Línguas divinas

As línguas minorizadas e a unidade de Deus

“‘Tolo, o que tu semeias não vivifica, se não morre antes’ (1 Co 15, 36). Diz que a imagem da ressurreição pode ser vista na semente, porque a semente nasce da putrefação. Etampouco seria tão difícil de crer, se estivéssemos atentos como se deve aos milagres que se oferecem a nossos olhos em todas as partes do mundo.”

— João Calvino, Instituição da Religião Cristã [1559]

“Aqui, mais que em nenhum outro domínio, cada língua contém, apesar das diversas opiniões coexistentes ou sucessivas, um sistema de conceitos que, precisamente porque se tocam, unem e completam na mesma língua, constituem um todo a cujas distintas partes não corresponde nenhuma do sistema de outras línguas, exceto ‘Deus’ e ‘ser’, o substantivo e o verbo originais. Pois, até o simplesmente universal, apesar de encontrar-se fora do domínio do particular, é iluminado e colorido pela língua.”

— Friedrich Schleiermacher, Sobre os diferentes métodos de traduzir [1813]

“Há duas maneiras de se perder: por segregação murada no particular ou a diluição no universal. Minha concepção do universal é aquela de um universal enriquecido de todo o particular, enriquecido de todos os particulares, um aprofundamento e coexistência de todos os particulares.”

— Aimé Césaire, Carta a Maurice Thorez [1956]

Introdução

 

As narrativas bíblicas tradicionalmente invocadas para abordar a questão da linguagem limitam-se a mencionar as línguas e justificar a origem de sua diversidade. Precisamente, pluralismo linguístico e variação linguística[1] são os conceitos-chave desta pesquisa, que se propõe a examinar as implicações teológicas da questão das línguas minorizadas.

 

A noção de língua minorizada

 

Por “línguas minorizadas” entendem-se as línguas que foram reduzidas ao estatuto de língua minoritária num território que é o seu território histórico de extensão[2]. Portanto, este estudo considerará um pluralismo linguístico entendido não como a coexistência de várias línguas, em particular línguas associadas a Estados e estereótipos nacionais hoje amplamente difundidos em todo o mundo, mas como um pluralismo linguístico universalmente ligado à persistência de línguas originárias em face de forças homogeneizadoras (o mercado, as políticas estatais,  a estratégia de promoção social, em particular). Estas línguas, que até há poucas décadas constituíam a língua maioritária de sectores inteiros da sociedade e que em pouco tempo foram reduzidas ao estatuto de línguas ameaçadas, parecem-nos ricas de um ensinamento particular, uma ilustração singular para a teologia, o campo de estudo que procura reproduzir no tempo presente a plenitude da mensagem cristã, o evangelho. Mais do que tudo, as línguas minorizadas não são uma mera abstração. Eles têm um nome, um rosto, um lugar. São os nomes, rostos e lugares de pessoas encontradas, registradas em ocasiões como coletas de dados e pesquisas sociolinguísticas, ou simplesmente durante visitas de vizinhança, algumas dessas relações mantidas por décadas.

 

Pluralismo linguístico e religioso

 

O paralelo entre diversidade religiosa e diversidade linguística é antigo. Na época moderna, pode ser rastreado até Bibliander, sucessor de Zwingli como professor no Grossmünster de Zurique e autor da primeira edição latina do Corão[3]. No século XX, o pluralismo religioso adquiriu a aparência de um desafio para a Igreja e para a teologia, materializando-se no diálogo religioso. Raimon Panikkar destaca o paralelismo entre pluralismo religioso e diversidade linguística, e mostra que “faz pouco sentido dizer que uma língua é mais perfeita do que outra”[4], situando assim a questão no encontro de línguas e religiões: “Não podemos comparar línguas (religiões) fora da língua (religião) e [...] Não há língua (religião) senão em línguas concretas (religiões).”[5] Como podemos ver, a teologia não parou de pensar o pluralismo religioso em termos linguísticos. Por outro lado, a crítica do pluralismo linguístico em termos teológicos pode contribuir para refinar ainda mais o espelho oferecido ao pluralismo religioso.

 

Abordagem sociolinguística e pluralismo religioso

 

Optamos por conduzir nossa pesquisa seguindo duas reflexões importantes relacionadas ao nosso tema: a do teólogo hermenêutico Claude Geffré nos ajudará a identificar os pontos de interseção entre a teologia das religiões e a diversidade linguística, enquanto recorreremos às análises de Patrick Sauzet para alcançar uma leitura sociolinguística das Escrituras. O linguista e especialista em occitano oferece um trabalho conceitual que aborda temas teológicos (as noções de “língua nua”[6], “língua imolada”[7], um Babel como símbolo da indiferenciação), permitindo-nos também considerar, ao longo desta pesquisa teológica, a questão do pluralismo linguístico por meio do exemplo concreto de uma língua minorizada, o occitano, proporcionando uma certa transparência conceitual.

 

Exame crítico

 

Se a sociolinguística e a teologia ainda não enquadraram as condições de sua discussão, e talvez nunca o façam, a questão das línguas minorizadas está na intersecção de várias teologias contemporâneas: teologias da libertação, teologias do processo, teologias contextuais e até mesmo o que a teóloga coreano-americana Grace Sun Kim chama de teologia da visibilidade[8]. Propomos, a partir de uma exegese teológica, examinar as ramificações bíblicas e teológicas desse plural e a dignidade dessa frase: “as línguas”. L'obstáculo principal reside em uma leitura ainda frequentemente punitiva de Babel (Gn 11,1-9), à qual estão ligadas, além disso, as noções de universal (a linguagem pré-babeliana compreendida como língua universal) e absoluto (tanto devido à busca dos homens refletida na narrativa quanto à reação de Deus que parece querer permanecer inacessível). A inclinação da teologia—mas também da filosofia—para lidar mais facilmente com a questão da linguagem do que com a das línguas acrescenta ao problema: a abordagem pela linguagem, compreendida como noção abstrata, tende a obscurecer a compreensão das línguas em sua concretude. As línguas seriam apenas expressões contingentes. Dedicar-se a essa questão por muito tempo abriria caminho para o relativismo.[9]

Em favor da abordagem por meio das línguas, deve-se notar, no entanto, que a leitura punitiva de Babel não vem necessariamente da própria teologia. Da mesma forma, a teologia cristã endossa a figura de um Deus pessoal e relacional, contrariando assim o conceito de absoluto[10]. Longe da abstração, o cristianismo apresenta-se como a religião da encarnação. Em tal lógica, “as línguas” poderiam ser, senão uma noção privilegiada, pelo menos uma noção identificada como tal?

As teologias mencionadas acima têm em comum enfatizar a ação do Espírito e desenvolver uma pneumatologia forte. Apesar de ameaçadas de extinção e apresentarem características de veneráveis relíquias, as línguas minorizadas expressam uma facilidade, uma vitalidade em apreender a realidade, em brincar e rir, que não deixa de lembrar o Espírito que “une o céu e a terra, penetra e dá vida a tudo, para que Deus seja tudo em todos”[11], numa articulação do mundo e da realidade que permite “superar o dualismo da matéria e do espírito.”[12] Já é a experiência íntima de todo falante de qualquer língua, através da linguagem, a experiência de uma relação íntima e evasiva com uma dimensão autônoma. Esta ligação entre as línguas e o Espírito, somada à enigmática intervenção divina em Babel, convida a questionar como essas se ordenam às pessoas da Trindade, ao Espírito e ao Pai, mas também ao Filho

Será que esta comunidade de três pessoas singularmente diversificada contém uma lição essencial para a diversidade que estamos examinando? As línguas minorizadas, línguas que definem os contornos de uma determinada comunidade, comunidades linguísticas e expressam uma certa solidariedade com o passado, podem estar ligadas a este princípio orientador que procura gerar relação e comunhão?

Além disso, as línguas nos convidam a revisitar, através da noção de pluralismo, a questão do um e do múltiplo e, partindo do fato da variação, a questão do mesmo e do outro. De fato, apesar do pluralismo ou da variação, a língua continua sendo uma, e os próprios dialetos mantêm seus contornos, ao mesmo tempo em que englobam variantes locais da fala que também estão em constante mudança.

Por fim, qual é o futuro das línguas consideradas sob o horizonte escatológico? Por um lado, a Palavra convida-nos a renunciar às lealdades familiares (Mt 8, 22; Mc 10,39), renunciai ao que é potencialmente fermento da sedição e concentrarnos naquilo que contribui para um projeto, a unidade a que somos chamados (Jo 17,21). Por outro lado, quando o Espírito sopra, ele nos chama para trabalhar. O que resiste, o que se expressa pela resistência das línguas às seduções do mundo, que ao longo dos séculos chamam a negar-se a si mesmas, é a recusa fundamental não só de apagar uma luz, mas também de validar uma injustiça. Não se render é lembrar, juntamente com Jesus posto à prova pelo tentador—figura etimológica de dispersão—que está escrita: “ 'É diante do Senhor, teu Deus, que te prostrarás, e somente a ele prestarás culto” (Mt 4,5-8; Dt 6:13; 10,20).

 

Anúncio do plano

 

Abordaremos primeiro os textos de Gn 9–11 e At 2,1-13 por meio da exegese histórico-crítica recente, depois através da sociolinguística, antes de propor uma tematização teológica dos elementos encontrados. Isso nos levará a examinar mais a fundo os desafios e complexidades da diversidade no que diz respeito à variação linguística, primeiro através do binômio Logos/Espírito (Capítulo II), depois da noção de universalidade (Capítulo III), antes de questionar as implicações teológicas do fato linguístico através da noção de próximo (Capítulo IV); finalmente, consideraremos a dinâmica que une a criação e a esperança (Capítulo V).

 

 

Nota 1 – Um interesse renovado pela questão da linguística?

 

A questão linguística não está ausente do debate que anima a vida da Igreja, e pode-se afirmar, ainda que timidamente, certa relevância da questão à luz dos desenvolvimentos atuais. A renovação do Pacto das Catacumbas: uma Igreja serva e pobre[13] dentro do catolicismo romano, revelou a noção de diversidade linguística, que, à primeira vista, não havia sido mencionada tão claramente até então pelas teologias da libertação. O texto foi assinado por um grupo de bispos que participou do Sínodo para a Amazônia, que aconteceu de 6 a 27 de outubro de 2019. Os padres sinodais signatários comprometem-se, em particular, a “renovar [...] a opção preferencial pelos pobres, especialmente pelos povos originários, e com eles garantir o direito de serem protagonistas na sociedade e na Igreja. Ajude-os a preservar suas terras, culturas, línguas, histórias, identidades e espiritualidades. Crescer na consciência de que eles devem ser respeitados local e globalmente e, consequentemente, encorajar, por todos os meios à nossa disposição, a serem acolhidos em pé de igualdade no concerto mundial de outros povos e culturas.”[14] A Exortação apostólica pós-Sinodal do Papa Francisco, intitulada “Querida Amazônia”, também aborda a questão das línguas nos seguintes termos: “Diante de uma invasão colonizadora dos meios de comunicação de massa, é necessário promover para os povos indígenas comunicações alternativas de suas próprias línguas e culturas e que os próprios sujeitos indígenas estejam presentes nos meios de comunicação existentes.”[15] Ocorreu uma epifania.

 

Nota 2 – Teoria cultural e teologia protestante

 

Devemos buscar sentido na diversidade, no pluralismo, correndo o risco de levar a uma teologia da diversidade que seria apenas uma theologia naturalis com novas roupagens? A atenção dada às mediações culturais tem uma contrapartida teológica. Isso se reflete em particular na teologia sistemática de Paul Tillich e na distinção introduzida por ele, dentro da teologia ocidental, entre o “princípio protestante” e a “substância católica”. Claude Geffré apresenta a distinção tillichiana como “a recusa de identificar qualquer elemento da realidade humana ou histórica com Deus [descrito como um ‘princípio protestante’], e substância católica, [...] isto é, a afirmação da presença espiritual de Deus em tudo o que existe.”[16] A teologia protestante pode abordar a questão de um ponto de vista sistemático, bem como de uma abordagem contextual? Pode a teologia protestante afirmar que, com “a efusão do Espírito do Ressuscitado no Pentecostes, pode-se pensar que a pluralidade de línguas e culturas é necessária para traduzir a riqueza multiforme do mistério de Deus?”[17] Obviamente, a teologia protestante pode afirmar isso, e não hesita em fazê-lo, como veremos em particular com Amos Yong.

[1] Utilizarei a noção de variação linguística como dado empírico. As línguas variam “no tempo (diacronia), no espaço (diatropia), na sociedade (diastratria) e segundo situações comunicativas (diafasia)”. (Martinho GlessenJohannes Kabatek, Harald Völker, “Repenser la variation linguistique: repenser la linguistique variationnelle” em Repenser la variation linguistique (Estrasburgo: Editions de Linguistique et de Philologie, 2018), 3. Partimos da ideia de que “A variação é inerente à linguagem, ou seja, constitutiva dela e não um simples fato da fala.” (Ibid., 4-5).

[2] “Llengua minoritzada”, em Diccionari de sociolinguística (Barcelona: Enciclopèdia Catalana, 2001), 178: “Llengua que, malgrat que pugui ser la llengua pròpria de la major part de la població autòctona, pateix uma restricció dels seus àmbits i funcions d’ús em um territori determinat, de tal manera que no serveix o no és necessària per a la major part d’ocasions o àmbits em què cal usar la comunicació verbal. Una llengua ha esdevingut minoritzada després d’um procés de bilingüització de la seva comunitat lingüística que l’ha conduït a la marginalització o subordinació lingüística. (“Uma língua que, apesar de ser a língua nativa da maioria da população, indígena, sofre uma restrição de seus domínios e funções de uso dentro de um território específico, a ponto de não ser utilizado ou não ser necessário para a maioria das ocasiões ou áreas em que a comunicação verbal é necessária. Uma língua é minorizada como resultado de um processo de bilinguização dentro de sua comunidade linguística, o que leva à sua marginalização ou subordinação linguística.”).

[3] Theodore Bibliander, De ratione communi omnium linguarum et literarum commentarius, org. Amirav Hag, Kirn Hans (Genebra: Droz, 2011), xxiv: “In Ratione, Bibliander treated the empirical plurality of languages in analogy to the plurality of religions in the world. The quest for a common ‘Principle’—in the sense of shared rules or a common structure—for all languages led consequently to the question of the hidden unity of all religions in shared basic convictions, for example, the belief in God’s creation of the world and his providence, which were expounded in the apologetical part at the end of Ratione.”. (“Em De Ratione, Bibliander tratou a pluralidade empírica das línguas em analogia com a pluralidade das religiões no mundo. A busca por um ‘principio’ comum, no sentido de regras compartilhadas ou de uma estrutura comum, para todas as línguas levou, consequentemente, à questão da unidade oculta de todas as religiões em convicções básicas compartilhadas, como, por exemplo, a crença na criação do mundo por Deus e sua providência, que foram expostas na parte apologética no final de De Ratione.”).

[4] Raimon Panikkar, The Intrareligious Dialogue, rev. ed. (Mahwah: Paulist Press, 1999), 19: “From the internal point of view of each language and religion, it makes little sense to say that one language is more perfect than another, for you can in your language (as well as in your religion) say all that you feel you need to say.”. Para explorar a relevância dos debates relacionados ao diálogo inter-religioso e intercultural, consultar Christophe Chalamet, Élio Jaillet e Gabriele Palasciano (orgs), La théologie comparée. Vers un dialogue interreligieux et interculturel renouvelé? (Genebra: Labor et Fides, 2021).

[5] Panikkar, The Intrareligious Dialogue, 21: “Only when we have a common language can we begin to compare, that is, to weigh against a common background. Only then may a mutual understanding take place. This model, moreover, makes it clear that we cannot compare languages (religions) outside language (religion) and that there is no language (religion) except in concrete languages (religions).”.

[6] Patrick Sauzet, “Occitan: de l’importance d’être une langue”, Cahiers de l’Observatoire des pratiques linguistiques (2012), 88.

[7] Ibid.: “O occitano é um estudo de caso quando se trata do status de uma língua. Não se define por nada externo, como geografia, história ou migrações de povos. A Occitânia não é uma ilha, nem mesmo uma península. Não formou exatamente um reino ou um estado cuja língua seria seu símbolo ou pegada. Além disso, o occitano é, como sabemos, uma língua românica cercada de línguas românicas. Não é isolado (exceto no ponto de contato com o basco) pelo efeito de recuo da diferença linguística radical contrastante de dialetos de outra família linguística. Uma diferença genética tão forte ou radical significa que, independentemente da variação interna dentro do domínio basco ou bretão, eles são percebidos, apesar dessa variação, como domínio de outra língua e, portanto, uma língua que pode ser ignorada ou rejeitada (isso é outra questão). Nem o occitano como língua é transportado externamente por outra instituição da qual seria expressão ou símbolo, seja a igreja, um partido político ou um movimento de libertação. Voltando à fórmula citada acima, o occitano não tem uma Marinha ou equivalente a uma Marinha, e é por isso que a chamei de “língua nua” (Sauzet 2008).”.

[8] Teóloga Grace Ji-Sun Kim destaca especialmente essa ligação entre linguagem e visibilidade. Graça Ji-Sun Kim, Invisible: Theology and the Experience of Asian American Women (Minneapolis: Editora Fortaleza, 2021).

[9] Por exemplo Alain Badiou criticou o interesse por questões linguísticas (a “virada linguística”) como “um abandono da preocupação filosófica com a verdade. [...] Para Badiou, a obsessão pelas mediações culturais inaugura um relativismo política e eticamente incapacitante.” (Steven Shakespeare, “Language”, in Nicholas Adams, George Pattison, Graham wards (orgs.), The Oxford Handbook of Theology and Modern European Thought, Oxford: Oxford University Press, 2013, 106). Cf Alain Badiou, O ser e o evento, trad. Maria Luiza X. de A. Borges (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996); Quentin Meillassoux, Après la finitude. Essai sur la nécessité de la contingence (Paris: Seuil, 2012). Para todos os fins úteis, indicamos a versão argentina da obra de Meillassoux, Después de la finitud. Ensayo sobre la necesidad de la contingencia, trad. Margarida Martinez (Buenos Aires: Caja Negra, 2012).

[10] O termo “absoluto” refere-se ao debate do século XIX sobre o caráter pessoal ou absoluto de Deus, tendo a teologia protestante conservado muito claramente a lição de Ritschl de um Deus em relação à sua criatura. Cf Christophe Chalamet, Théologies dialectiques. Aux origines d’une révolution intellectuelle, Genebra, Labor et Fides, 2013,(Genebra: Labor et Fides, 2013), 70: “Se a teologia protestante não quer sucumbir à tentação da metafísica e da especulação hegelianas, deve parar de falar de Deus como ser. ‘absoluto’ (separado, ab-solutus), ‘em si mesmo’ e, portanto, sem relação com a sua criatura”.

[11] Klauspeter Blaser, “L’Esprit”, em André Birmelé, Pierre Bühler, Jean-Daniel Causse, Lucie Kaennel (org), Introduction à la théologie systématique (Genebra: Labor et Fides, 2008), 292.

[12] Ibid.

[13] Em 16 de novembro de 1965, foi assinado o Pacto das Catacumbas da Igreja serva e pobre.. Após o eco deste primeiro Pacto, um documento que se apresenta como um pacto renovado foi assinado em 20 de outubro de 2019, também nas catacumbas de Santa Domitila, em Roma, sob o título de “Pacto das Catacumbas pela Casa Comum: Por uma Igreja com rosto amazônico, pobre e serva, profética e samaritana”.

[14] Veja a versão em português https://www.revistamissoes.org.br/2019/10/pacto-das-catacumbas-pela-casa-comum-por-uma-igreja-com-rosto-amazonico-pobre-e-servidora-profetica-e-samaritana, (Último acesso em 25 de setembro de 2023).

[15] Papa Francisco, “Exortação apostólica pós-sinodal querida amazonia do santo padre francisco ao povo de deus e a todas as pessoas de boa vontade”, 2 de fevereiro de 2020, https://www.vatican.va/content/dam/francesco/pdf/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20200202_querida-amazonia_po.pdf, (Último acesso em 25 de setembro de 2023).

[16] Claude Geffré, De Babel à Pentecôte. Essais de la théologie interreligieuse (Paris: Cerf, 2006), 106.

[17] Ibid., 63.

I. De Babel a Pentecostes

 

O leitor da Bíblia enfrenta, desde os primeiros versículos do Gn, um Deus que fala. Se esse Deus que fala implicitamente levanta a questão da preexistência da linguagem, essa não é a priori a questão que esses mesmos textos se propõem a considerar. Esses textos também não abordam o acesso humano à linguagem: “Os relatos bíblicos não especificam um dom de linguagem para o homem. Sem dúvida, eles imaginam que o homem compartilha isso com Deus e os animais. [...] Portanto, de acordo com o relato bíblico, há originalmente uma linguagem comum que é entendida pelos homens, Deus e animais.”[1] Que Deus fala, como a linguagem chegou ao homem, nada disso motiva, portanto, a escrita dos relatos que compõem a primeira parte de Gn (Gn ­1–11). No entanto, devemos observar a ideia implícita de uma linguagem comum para animais, homens e Deus. Assim, no lugar comum da polêmica contra as línguas minorizadas—onde essas línguas são erroneamente consideradas como discursos rudimentares, sem gramática, usados por seus falantes para tratar seus animais—o relato bíblico nos obriga a reintroduzir uma pessoa, e não qualquer pessoa, mas Deus. Mas esses textos podem fornecer uma base teológica para as línguas minorizadas?

 

A. Exegese teológica: a criação, a dimensão relacional, o significado histórico

 

Antes de nos aprofundarmos na exegese teológica de textos que parecem relevantes para abordar sistematicamente línguas minorizadas, lembremos dois elementos sobre o contexto em que os textos selecionados foram compostos. O primeiro elemento de contexto é a diversidade teológica na Bíblia hebraica, especialmente a teologia da criação presente nos capítulos iniciais de Gn e Deutero-Isaías. A teologia da criação insiste na dimensão relacional: as várias narrativas de criação presentes no Antigo Testamento são oportunidades para “revelar a natureza divina em seus diferentes aspectos, assim com [...] o a resposta humana que é exigida em retorno.”[2] O segundo elemento do contexto se beneficia das recentes contribuições das ciências bíblicas para a história do antigo Oriente Médio e Próximo em relação a essas mesmas narrativas da criação. Estas últimas têm menos vocação para explicar metafisicamente a origem do mundo, menos para explicar um estado de coisas (narrativas etiológicas) do que para dizer algo do presente e envolver o leitor em relação à situação do tempo presente. O que Matthias Albani aponta sobre Deutero-Isaías também se aplica a Gn 1–11: “A teologia da criação em Deutero-Isaías não é um fim em si mesmo, mas o meio para demonstrar o poder de YHWH sobre a história.”[3] Nesta fase, devemos salientar que a teologia da criação sugerida por esses textos não é precisamente a teologia de una creatio prima ou una creatio originalis, como é comumente entendida. YHWH age na história, no tempo presente, e sua ação é também uma ação política. As imagens retratadas revelam um Deus em ação, indicando um empreendimento intencional por trás dessa atividade divina. Nesta teologia d’uma creatio continua, os conceitos de salvação e justiça têm uma importância única, às vezes até mesmo englobando a ideia de uma nova creatio (Is 45,1-8). Finalmente, devemos considerar como os conceitos de poder e história se cruzam na história de Babel, expondo a força inerente a uma humanidade que já mostrou sua capacidade de violência (Gn 4; 9).

 

         a. Gn 9 – O Dilúvio

 

Pesquisas recentes insistem que o relato de Babel deve ser lido em contexto, especialmente em relação ao capítulo anterior da Bíblia hebraica conhecido como a Tabela das Nações. No entanto, a menção a uma linguagem compartilhada entre humanos e animais nos leva a nos aventurar ainda mais atrás, literalmente para o tempo do dilúvio. Como aponta Thomas Römer, “o evento do dilúvio também representa uma ruptura significativa, pois leva à subsequente diferenciação da humanidade e ao surgimento de várias línguas.”[4] O evento do dilúvio resultou em mudanças notáveis, e entre elas estava a introdução de carne na dieta humana. De fato, o relato inicial da criação descreve uma visão harmoniosa e tranquila do início do mundo: no sexto dia, “Deus disse: Vede que vos dei toda a erva semente que existe sobre a viga de toda a terra, assim como toda árvore que dá fruto; para você será comida. E a cada animal terrestre, e a cada pássaro do céu, e a cada servo da terra, animado com vida, toda a grama verde que dou como alimento. E assim foi.” (Gn 1,29-30). O dilúvio traz consigo uma relação profundamente alterada com os animais: “O teu temor e terror estarão sobre todos os animais da terra, e sobre todas as aves do céu, e sobre tudo o que rasteja sobre a terra, e sobre todos os peixes do mar; na tua mão são entregues. Tudo o que se move e tem vida será para te comer: eu te dou tudo como te dei a grama verde” (Gn 9,2-3). Embora o relato da criação tenha originalmente concebido uma existência humana vegetariana, a bênção pronunciada por Elohim ao deixar a arca sinaliza uma mudança sinistra para uma das três partes envolvidas, mesmo que elas ainda compartilhem uma linguagem comum. Segundo André Wénin, “ao proferir essas palavras, Elohim mostra sua aceitação da violência como parte da realidade humana. Assim como no início, quando Elohim integrou os elementos do caos primordial no universo harmonioso (Gn 1,3-10), ele agora remodelará o plano inicial para acomodar esse novo elemento do caos, que, desta vez, surge da humanidade.”[5] Embora a diferenciação das línguas ocorra após o dilúvio, deve-se notar que ela não parece estar ligada a essa concessão à violência ou ao caos. Além disso, é importante notar que o conceito de linguagem permanece intimamente entrelaçado com o de discurso, ambos borrados e muitas vezes confundidos com a noção de alimento ou comida: “O leitor bíblico é rapidamente confrontado com o assunto da comida. Dois discursos divinos, dirigidos à humanidade, abordam este tema: a declaração final do relato da grande criação em Gn 1 e o mandato inicial dado por YHWH Elohim no Jardim do Éden em Gn 2. Em ambos os casos, o Criador fornece alimento para os seres humanos, embora com limitações.”[6] Vamos revisitar nossa relação tripartite e monolíngue: animais-humanidade-Deus. A humanidade encontra-se em estado de dependência alimentar do seu Criador; e sua inclinação para o mal, como mencionado em Gn 8,21, é agora reconhecida. Deus intervém estabelecendo limites, dizendo: “Mas carne com a sua vida, isto é, com o seu sangue, não comerás”. (Gn 9,4), e estabelecendo a lei do talião: “Pedirei contas da vida de cada ser humano” (Gn 9,5). No entanto, a confusão das línguas não tem nenhuma ligação com a maldade humana mencionada ou com a intrusão da violência. Pelo contrário, Babel e a introdução do pluralismo linguístico alinham-se com a lógica de fronteiras estabelecida por Elohim.

Além disso, Gn 9 reafirma o conceito de que os seres humanos foram criados à imagem de Deus (Gn 9,6b). A passagem enfatiza esse ponto singularmente, pois invoca a noção de imago Dei para justificar a aplicação da pena de morte: “Quem derramar o sangue do homem, seu sangue também será derramado pelo homem, porque Deus criou o homem à sua imagem”. (Gn 9:6; BCL). Em outras palavras, a existência da violência não prejudica o imago Dei, mas exige a busca da justiça. Referindo-se a Gn 1, onde a frase “à nossa semelhança” está notavelmente ausente entre Gn 1,26a e Gn 1,27, André Wénin comenta: “Alguns Padres da Igreja já o disseram: se a imagem de Elohim é dada ao ser humano, ele ainda não se assemelha a si mesmo, e sua primeira tarefa será assemelhar-se à imagem que nele foi depositada. Assim, fica claro o sentido de ‘façamos’: o ser humano é chamado a colaborar por meio de suas ações na realização daquele que Elohim criou à sua imagem.”[7] A linguagem, como enfatiza Thomas Römer, ainda não desempenha um papel discriminatório. A linguagem, compartilhada pelos animais, pelos humanos e por Deus, não é o que faz a humanidade à imagem de Deus. Chamados a assemelhar-se a Deus, os seres humanos não são chamados a encontrar numa única língua o caminho para esta semelhança. Além disso, o conceito de poder associado à linguagem iria contra o relato da criação que nos convida a ver um Criador “forte em seu próprio domínio”[8], que não apenas estabelece limites para suas criaturas, mas também se limita: o sétimo dia “se destaca [...] ternura no coração da imagem de Deus. É uma lei de ternura que corrige as projeções de um Deus todo-poderoso, confundido com o nosso sonho de onipotência, isto é, um Deus à nossa imagem.”[9] Uma fantasia de origem baseada no mito de uma única língua enfrentaria vários obstáculos significativos, como revela a exegese bíblica. Primeiro, não pode reivindicar um privilégio exclusivo para a humanidade, uma vez que a única língua é compartilhada por animais, humanos e Deus. Em segundo lugar, o impulso fundamental por trás dessa perspectiva monolíngue, alimentada por uma sede insaciável de autoridade absoluta, revela sua natureza inerentemente idólatra. Tenta criar uma linguagem à imagem da humanidade em vez de abraçar a Palavra recebida e compartilhada. Em terceiro lugar, a própria essência da criação envolve ordenar estabelecendo limites e fronteiras. Portanto, o relato bíblico não é a narrativa apropriada para denunciar o pluralismo linguístico como fonte de caos e desordem. Antes mesmo de chegar ao relato de Babel, tal leitura se apresentaria como um equívoco.

Assim, enquanto as línguas minorizadas são por vezes criticadas, retratando-as como um refúgio de particularismos, uma certa fetichização do passado, enfim, uma fantasia de origens, tais críticas parecem estar mais associadas ao anseio por uma única língua, de preferência a da própria pátria, do que a uma aceitação inicial do pluralismo linguístico que seus críticos convenientemente rejeitam como identidades fraturadas ou sectarismo. Especificamente, para o estudioso bíblico, “não há nenhuma teoria sobre a origem dessa linguagem singular; poder-se-ia argumentar que, segundo o autor sacerdotal, suas origens se encontram na palavra de Deus Criador.”[10] Se, desde os primeiros versículos da Bíblia, Deus fala, é porque a Palavra está em primeiro lugar.

 

         b. Gn 10 – A Tabela dos Povos

 

O que acontece especificamente com o capítulo imediatamente anterior ao relato de Babel, que Thomas Römer e Albert de Pury nos convidam a não separar deste último? Thomas Römer aponta que antes de Babel (Gn 11), há Gn 10 e a divisão das nações com base em Sem, Cam e Jafé, os três filhos de Noé: “Cada um tinha seu país de acordo com sua língua (אִ֖ישׁ לִלְשֹׁנֹ֑ו) e seu próprio povo de acordo com seu clã” (Gn 10:5b). O exegeta David Carr aponta em uma nota de rodapé a desvantagem de traduzir a palavra גּוֹי como “nação” devido ao seu sentido moderno e prefere o termo “povo” no sentido de grupo humano. Seguimos esta recomendação[11]. O relato da Tabela dos Povos (Gn 10), então, divide a humanidade em três grupos associados aos três filhos de Noé, de acordo com sua localização geográfica e língua (vv. 5, 20, 31). Essa divisão é explicada no último versículo da própria perícope: “Estas são as famílias dos filhos de Noé segundo suas genealogias, por seus povos. Deles os povos se espalharam por toda a terra depois do dilúvio” (Gn 10,32).

Se, como enfatiza o estudioso bíblico Markus Witte, a estrutura do texto representa brevemente “uma diferenciação sociogeográfica baseada em famílias (mišpāchāh), línguas (lāšôn), terras (‘æræṣ) e povos (gôj) (Gn 10:5; 10,20, 10,31)”[12], não é possível considerá-la uma tentativa anacrônica de sociolinguística. Pelo contrário, como insiste David Carr em seu comentário recente: “Um exame mais atento mostra que o capítulo parece ser composto para resistir às tentativas de lê-lo como uma visão geral dos povos conhecidos, mesmo quando algumas partes dele, especialmente aqueles que não pertencem ao sacerdócio, estão problematicamente ligados a discursos posteriores sobre escravidão e raça.”[13] Em outras palavras, Gn 10 estabelece uma conexão entre diversidade cultural e diversidade linguística, e o faz de uma maneira que interessa particularmente à teologia: “Deve ficar claro que, em contraste com a descrição do desenvolvimento de várias espécies de plantas e animais em Gn 1, os seres humanos em Gn 10 não são de forma alguma representados como distintos uns dos outros por tipo físico ou espécie [...] Todos trazem implicitamente a imagem de Deus transmitida de geração em geração (Gn 5,1-3), enquanto se distinguem socialmente uns dos outros por uma combinação de características geográficas, étnico-nacionais e linguísticas (Gn 10,20, 31 e a forma original de 10,5).”[14] Assim, a Tabela dos Povos já indica que, apesar das analogias, ecolinguística e ecoteologia não são redutíveis entre si. Quanto à questão do Uno e do múltiplo, a multiplicidade humana não é representada como um fenômeno natural.

Esta é também uma limitação da teologia natural. A diversidade humana é desejada por Deus, embora o texto, e mais amplamente Gn 1–11, tenha a marca de tensões entre, por um lado, os relatos pós-dilúvio da “divindade (YHWH) causando dispersão humana (פוץ hifil Gn 11,8a, 9b; também נפץ Gn  9,19)”[15] e, por outro lado, a história de um Deus “na origem deste processo em Gn 10*, abençoando os seres humanos e encorajando-os a multiplicar-se (Gn 1,28; 9,1,7).”[16] Diante dessas contradições, a Geração 10 parece ser a menos motivada teológica ou politicamente, a mais imparcial[17]. A partir de Gn 10, cada povo ou grupo tem sua própria língua distinta. A diversidade linguística entre os grupos e a individualidade de suas línguas, como retratado no capítulo 10, vem da vontade divina: “Para P, a diversidade das línguas aparentemente pertence à humanidade pós-Dilúvio. Está presente desde o início e não parece representar um problema específico.”[18] O pluralismo linguístico encontra aqui um privilégio teológico, isto é, uma justificação bíblica, de que o pluralismo religioso não goza, uma vez que a diversidade religiosa não é mencionada.

 

 

 

         c. Gn 11 – A Torre de Babel

 

Voltando a Babel, Albert de Pury não deixa margem para ambiguidades: “Um narrador, um escritor ou mesmo um adaptador não poderia estar satisfeito com a impressionante e despreocupada descrição que a escrita sacerdotal tinha dado da diversidade dos povos e suas línguas. Portanto, para resolver isso, eles introduziram a história da construção da Torre de Babel.”[19]  Esta versão impressionante e despreocupada é a versão sacerdotal da Gn 10. Portanto, é apropriado interpretar Gn 11 como uma resposta deliberada para neutralizar esse sentimento de admiração e descuido. No relato de Babel, “a multiplicidade de línguas não é vista como o resultado de uma ramificação orgânica da linguagem humana, mas como a consequência de uma confusão punitiva imposta de forma preventiva (v. 1.9a). Da mesma forma, a dispersão dos povos pelo mundo não é mais entendida como uma resposta a um convite para ‘encher a terra’, mas como um castigo infligido por YHWH (v. 4b.8a.9b).”[20] Esse mesmo editor teria intervindo no capítulo anterior para corrigir sua placida: “Segundo análises recentes (Witte, de Pury, entre outros), esses fragmentos não podem ser atribuídos a um antigo Yahwist; são adições e correções posteriores ao estilo sacerdotal, especialmente em Gn 10,8-13; 15-19; 21; 24-25. Esses acréscimos procuram estabelecer uma conexão com a maldição de Canaã em Gn 9 e a Torre de Babel em Gn 11. Os redatores procuram integrar a mesa sacerdotal das nações em um novo contexto que destaca as diferenças entre os povos e interpreta a diversidade das línguas como castigo divino.”[21]

Lembremos que, até aquele momento, a questão da linguagem não se colocava. Com esta intervenção pós-sacerdotal, o que emerge não é apenas uma teologia da linguagem, mas uma ideologia da linguagem[22]. David Carr intitulou seu comentário sobre Gn 11,1-9 como “Prevenção divina do poder humano coletivo através da confusão linguística e dispersão dos seres humanos”. Até agora, o poder discutido tem sido o da divindade, um deus capaz de se autolimitar. A malevolência da humanidade tem sido enfatizada e as concessões resultantes dessa constatação têm sido acompanhadas de limites. Portanto, o que se torna evidente em Gn 11,1-9 é o poder da humanidade, um poder que Carr caracteriza como coletivo. Se o fio da imago Dei for seguido, um leitor desatento pode pensar que é nesse poder coletivo que a humanidade se faz à imagem de Deus. Na realidade, não é a humanidade que se limitará aqui, mas é Deus que terá de intervir. Deus intervém contra o poder humano coletivo por dois meios: a confusão das línguas e a dispersão dos seres humanos.

Explorar as duas noções de σύγχυσις[23] e διασπορά oferece perspectivas valiosas. Enquanto σύγ-χυσις denota confusão literal, δια-σπορά representa dispersão. No entanto, é a confusão de línguas que, em última análise, leva à dispersão da humanidade. Como mencionado acima, a tradução de David Carr efetivamente captura as formas ativa e passiva do verbo [24]פוץ. Portanto, a tradução do NBS apresenta adequadamente Gn 11,4bc como “façamos um nome para nós mesmos, para que não sejamos espalhados por toda a terra”, enquanto a tradução em inglês de Carr transmite apropriadamente o aspecto causativo (hifil) do versículo 11,8a com “And YHWH caused them to scatter from there across the surface of the earth (E YHWH fez com que eles se espalhassem de lá para a superfície da terra.)”[25]  As intenções humanas têm um resultado oposto. No entanto, vale a pena notar que a dispersão não é apenas uma consequência direta da ação divina, especialmente no contexto de Babel: “Este processo de dispersão especificamente humano é antecipado pela preocupação dos humanos em se dispersar por toda a terra.”[26] Em síntese, no capítulo 10 (A Tabela dos Povos), a dispersão humana e a diversidade linguística são apresentadas como resultados do mandamento divino de se multiplicar. No capítulo seguinte, a dispersão humana persiste, mas assume uma dimensão nitidamente humana. Ela não está mais exclusivamente ligada ao mandamento divino de “multiplicar”, mas também surge da ansiedade humana em relação à sua própria dispersão.

A preocupação humana com sua dispersão encontra uma reflexão contrastante no presente, onde alguns de nós abrigam ansiedade em relação à possível homogeneização ou reunificação da humanidade, que percebemos como separada da iniciativa divina. A narrativa de Babel tem sido interpretada como uma crítica ao imperialismo, uma interpretação que remonta ao período do Segundo Templo[27]. No entanto, essa interpretação é considerada mais eisegética do que exegética e, segundo os comentadores, deve ser abandonada. Eles argumentam que “embora o texto mostre sinais de composição durante a dominação mesopotâmica de Judá [...], ele não reflete ou critica o poder imperial.”[28] Isso é importante enfatizar porque, como veremos a seguir, não apenas sociolinguísticas e falantes de línguas minorizadas, mas também defensores da diversidade encontraram uma interpretação positiva de Babel como uma crítica a certas formas de imperialismo. No entanto, uma abordagem cautelosa na exegese contemporânea é necessária. O texto não deve ser usado para ilustrar “como os impérios coloniais prejudicaram as comunidades linguísticas indígenasou focar em uma suposta ameaça aos valores tradicionais representada por alguma forma de relativismo ético.”[29] A história nos convida a justapor a vontade de poder e o melhor humanismo, o imperialismo belicista e o universalismo pacifista?

Também é preciso cautela ao interpretar o relato de Babel como uma crítica, não necessariamente à homogeneização cultural, mas à formação de uma comunidade global. Não é sem razão que David Carr conclui seu comentário sobre o relato afirmando: “Olhando para o futuro, pode-se perguntar se o profundo ceticismo desta passagem sobre a cooperação humana global não seria especialmente problemático em um momento como este, onde questões centrais, como as mudanças climáticas, exigem que a comunidade global encontre uma linguagem comum para enfrentar desafios profundos para a vida contínua das crianças da humanidade em toda a terra.”[30] Face aos desafios prementes que a humanidade enfrenta hoje, a mensagem transmitida pelo relato de Babel revela uma profunda subtileza, alertando-nos para os perigos da uniformidade e recordando-nos que não devemos negligenciar a história e o futuro comuns da humanidade, apesar da sua dispersão.

Para sermos fiéis ao texto e às reflexões da pesquisa bíblica, não devemos ignorar “a proeminente descrição da divindade preocupada em proteger as prerrogativas divinas, perturbando a comunidade humana.”[31] Diante dessas reflexões, o que falta considerar? Várias interpretações, inclusive as oriundas da teologia contextual, “têm contribuído significativamente para uma compreensão mais equilibrada da passagem, afastando-se de uma visão estreita que a considera apenas como uma narrativa de crime e castigo. Em vez disso, eles fornecem sensibilidade para a representação complexa dos esforços humanos e enfatizam que a resposta de YHWH não é apresentada como um castigo pela desobediência humana.”[32] Embora a confusio linguarum leve à dispersão dos seres humanos na Terra, não é uma consequência punitiva da desobediência. Pelo contrário, faz parte de um processo mais amplo de limitação e demarcação que é evidenciado ao longo do texto de Gn 1–11.

Então, quais são as principais lições no final? Há pelo menos três aspectos restantes que devem ser considerados. Primeiro, como enfatiza o comentarista, a narrativa exige um processo contínuo de reequilíbrio. Isso envolve reavaliar a dinâmica entre o Criador e Sua criação, bem como reexaminar as várias interpretações que vão além do sentido literal do texto. Em segundo lugar, em consonância com as histórias de criação do antigo Oriente Médio e Próximo, esse reequilíbrio pretende ser relevante para os leitores contemporâneos da narrativa. A história de Babel, como sugerido acima, não é simplesmente uma narrativa etiológica explicando as origens das línguas, mas uma ferramenta elaborada para abordar o tempo presente. Convida-nos a refletir sobre as tendências egocêntricas da divindade, o potencial destrutivo da humanidade até mesmo em suas intenções mais nobres e a ambivalência inerente à linguagem, tanto sagrada quanto amaldiçoada. Em terceiro lugar, este processo de reequilíbrio não se faz através de uma única língua, mas através da pluralidade de línguas e das variações linguísticas. As próprias línguas tornam-se um meio de reequilíbrio, uma forma de mediação divina. Por fim, vale ressaltar que a intervenção divina, não decorrente da desobediência humana, não é retributiva. Por enquanto, concluamos com estes pontos.

 

         d. At 2,9-13 – Pentecostes

 

Agora vamos nos concentrar em Pentecostes e, antes de tudo, lembrar por que esses dois episódios são frequentemente comparados. Como aponta o comentarista Carl Holladay, o Pentecostes aparece como uma reversão de Babel. Isso não só porque Lucas usa uma linguagem que ecoa Gn 11,1-9, mas também porque no Pentecostes as línguas não se confundem mais. Cada um, embora fale em sua própria língua, entende os outros: “Deus desfaz no Pentecostes o que foi feito em Babel.”[33] Craig Keener, por sua vez, acredita que “essa abordagem certamente se encaixaria no tema da missão de Lucas que transcende as barreiras culturais e linguísticas.”[34] No entanto, à luz das recentes contribuições da exegese de Gn 11, ainda podemos interpretar At 2 como uma narrativa anti-Babel?

Pentecostes é a vinda do Espírito. No entanto, como devemos entender a natureza e o propósito do Espírito no livro de Atos? “Em Atos, o Espírito Santo é a presença substituta [surrogate presence] de Deus. Ao apresentar o Espírito como a presença capacitadora dentro da igreja, Lucas reforça o tema da orientação [guidance] providencial.”[35] O conceito de ‘presença capacitante [empowering] estabelece uma conexão e nos remete à ramificação da noção de poder nas narrativas e na teologia das narrativas da criação. É notável que, mais uma vez, Deus intervém através do uso de línguas. Especificamente, usamos a forma plural definida. Deus intervém através das “línguas”, não simplesmente “certas línguas” e, em todo o caso, não simplesmente através da “língua”. Pentecostes é a reunião de apóstolos que começam a “falar em outras línguas” (ἤρξαντο λαλε ῖν ἑτέραιςγλώσσαις; At 2,4b). É excessivo enfatizar o uso de ἄρχομαι, para começar? Certamente não: “O relato de Lucas sobre o Pentecostes é apresentado como um evento inaugural.”[36] E o que podemos entender sobre essa heteroglossia (heterolalia)? Antes de mergulharmos na questão, é importante reconhecer que a intervenção divina nos leva a agir. Encontramos um movimento semelhante ao que a sintaxe hebraica nos convidou a ver. Assim como a confusio linguarum causou a διασπορά dos seres humanos, em Lucas o Espírito Santo conduz a fala dos apóstolos e dos personagens principais (Pedro em At 4,8; Estêvão em 6,5,10 e 7,55; Ágabo em 11,28 e 21,11; Paulo em 13,9-11 e 20,23; Apolo em 18,25). “O Espírito Santo não apenas estimula as pessoas a falar, mas também dirige seus movimentos.”[37] Além disso, o Espírito “é derramado não apenas sobre representantes devidamente nomeados, como os apóstolos, mas também entre os crentes. Essa democratização do Espírito recebe grande ênfase em Atos.”[38] No entanto, essa presença capacitadora encontra sua expressão programática no evento milagroso de Pentecostes, que se caracteriza não apenas por um simples discurso em línguas[39] (glossolalia), mas pela manifestação de diferentes línguas (heteroglossia). Coloca-se a questão crucial: o “milagre” na extraordinária capacidade de se compreenderem, apesar da multiplicidade de línguas, resulta na relativização das línguas, ou as próprias línguas assumem um papel fundamental no desenvolvimento deste acontecimento notável?

Em primeiro lugar, o milagre, que gera espanto e serve como sinal de intervenção divina, concentra-se menos nas línguas de fogo que dividem e descem sobre o grupo reunido em um só lugar (At 2,3), e mais no espanto da multidão atraída pela comoção: “A multidão veio e ficou espantada, porque cada um os ouviu falar em sua própria língua” (At 2,6). O que o grupo percebia como heteroglossia, falando em línguas diferentes, tornou-se para a multidão uma experiência incrível de ouvir os apóstolos falarem em seus próprios idioletos (ἤκουον εἷς ἕκαστος τῇ ἰδίᾳ διαλέκτῳ λαλούντων αὐτῶν At 2,6b). Ao usar o termo idioleto aqui, nos baseamos no texto. A pedagogia da linguagem não negligenciou o significado do adjetivo ἴδιος e o léxico de At 2,1-13. Encontramos ἴδιος em ἰδίωμα, que significa “peculiaridade; idioleto (peculiaridade de uma língua)”[40], ou ἰδιώ–της, “simples particular, em oposição ao funcionamento público; daí ‘idiota’ (que é muito particular)”[41] e, finalmente, ἰδιωτισμός, que significa “1) uma língua específica de um indivíduo; 2) expressão idiomática (uma virada particular na linguagem).”[42] De certa forma, essa raiz é suficiente para encapsular a ambição dessa tese: focar não na linguagem, mas nos idiomas, englobando tanto o que resiste à tradução[43] quanto o que os tradutores escolhem reter da língua de origem. Sustentamos que o Pentecostes não implica o apagamento das línguas em favor da mensagem; pelo contrário, a própria mensagem reside na reverência pelas qualidades únicas de cada língua. Entre os versos 4 e 6, uma mudança de perspectiva é orquestrada, passando do possessivo (“loqui eorum linguis”) para o reflexivo (“lingua sua illos loquentes”) e alteridade ou alteridade (a Vulgata apropriadamente traduz como “loqui aliis linguis”). O milagre está no fato de que cada pessoa ouviu os apóstolos falarem em seus próprios dialetos, em seu discurso mais particular. Do ponto de vista sociolinguístico, o Pentecostes pode ser visto como o triunfo do hiperlocalismo. Sob a influência do Espírito, o grupo fala naqueles mesmos discursos que Dante define como “[falando] à qual os netos se familiarizam, por influência de seu ambiente, desde o primeiro momento em que começam a distinguir sons.”[44] De fato, o que seria tão peculiar em ouvir línguas estrangeiras faladas em uma cidade cosmopolita, especialmente durante a época de peregrinação? Certamente, a experiência de ouvir línguas estrangeiras em um ambiente diverso não é nada fora do comum.

De fato, há uma tensão no texto. O público que vem testemunhar a cena é descrito como residente em Jerusalém (εἰς Ἰερουσαλὴμ κατοικοῦντες At 2,5), uma precisão que parece excluir os peregrinos[45], mas também é mencionado que eles vêm “de todos os povos que estão debaixo do céu” (ἀπὸ παντὸς ἔθνους τῶν ὑπὸ τὸν οὐρανόν At 2,5). Em suma, a passagem descreve um duplo movimento, centrípeto e centrífugo, um correspondente ao encontro e outro à missão.

Especificamente no contexto da obra lucana e do contexto histórico em que o querigma se manifestou, a questão da linguagem não é negligenciada. A obra de Lucano, fiel aos cânones da historiografia antiga, é sensível ao tema linguístico. O princípio da verossimilhança, seguindo Tucídides[46], leva Lucas a aderir a um certo realismo linguístico. Por exemplo, “em seu discurso no Pentecostes (At 2,14-41) ou em seu sermão no Templo de Jerusalém (At 3,17-26), Pedro fala em um grego influenciado pelo semitismo, próximo ao da Septuaginta. No entanto, quando Lucas apresenta Paulo no meio do Areópago em Atenas, ele atribui a ele um discurso caracterizado pelo classicismo ático, cheio de eletivas e figuras de linguagem, e desenvolvendo argumentos impregnados de empréstimos de pensadores estoicos.”[47] O espanto da multidão reunida baseia-se inteiramente no fator dialetal e sociolinguístico, e é explicitamente expressa: “E todos pasmavam e se maravilhavam, dizendo uns aos outros: Pois quê! não são galileus todos esses homens que estão falando?” (At 2,6-7). A questão da diglossia[48] também é apontada por Keener, que observa que “muito mais problemático, Lucas não sugere que seja diglossia ou que se espera que os discípulos falem apenas hebraico nesta ou em outra ocasião.”[49] Em relação ao evento de Pentecostes, Carl Holladay lembra que o aramaico galileano é ridicularizado no Talmud através da história de um galileu “que foi ao mercado em Jerusalém e pediu para comprar um amor. O comerciante respondeu: ‘Estúpido galileu, você quer montar (um burro = ḥamār)? Ou algo para beber (vinho = ḥamar)? Ou algo para vestir (lã = ʿamar)? Ou  algo para um sacrifício (um  cordeiro = ʾimmar)?’“[50] Finalmente, é preciso mencionar um Jesus histórico potencialmente diglóssico[51]. Assim, é bastante significativo que a questão da língua falada pelo Jesus histórico seja de perto seguida pela que questiona sua possível iletracia[52], remetendo à questão da relação entre o escrito e a cultura. Ainda hoje, estima-se que 70% das culturas em todo o mundo são predominantemente orais[53] e fazem parte do que a UNESCO define como patrimônio cultural imaterial (ICH)[54].

Finalmente, um aspecto da língua é o sentimento de pertencimento a uma cultura, mesmo entre aqueles que não falam a língua. Em seu livro Jesus de Nazaré: Judeu da Galileia, Salvador do Mundo, Jens Schröter observa que: “Mas a consciência de uma identidade judaica distinta que surgiu no período Macabeu, que era orientada para a aliança e a lei e dirigida ao templo de Jerusalém, permaneceu viva, assim como as tradições judaicas que surgiram nesse período e que encontraram expressão em escritos de caráter apocalíptico ou sapiencial.”[55] Esta dimensão do que pertence exclusivamente a cada indivíduo ou cultura, e que se expressa particularmente intimamente através da linguagem, não parece estranha ao que a narrativa de Pentecostes transmite.

 

Pentecostes e eclesiologia

 

Se o Pentecostes é a realidade fundamental da Igreja, então essa realidade é vivida e vivida através do pluralismo linguístico e da variação linguística. Amos Yong, teólogo e missiólogo da tradição pentecostal, expressa essa ideia afirmando: “De fato, o povo eclesial de Deus foi fundado por sua experiência única do Espírito em meio à pluralidade e diversidade de suas línguas particulares no dia de Pentecostes (At 2). O mesmo Espírito que permitiu a compreensão intercultural e a koinonia na igreja primitiva é aquele em quem toda a humanidade também vive, se move e tem sua existência (At 17,28).”[56] Por isso, é fundamental não descurar a dimensão material e a experiência fundamental do Espírito ao reduzir as linguagens a meros instrumentos de elaboração teológica. “Desta realidade eclesial que abrange línguas, culturas, espaço e tempo nasce a imaginação pneumatológica: a capacidade de compreender o Espírito, falar as línguas do Espírito, experimentar a realidade do Espírito e envolver-se com a realidade espiritual, que é intrinsecamente una através da sua pluralidade.”[57] O que as línguas conservam como suas, mesmo na sua singularidade, não deve impedir a formação de uma comunidade, mas antes tornar-se uma condição para uma partilha genuína. A verdadeira comunhão exige que cada indivíduo contribua com o que lhe é único. Além disso, o κοινωνία não é propriedade comunitária, como no regime de bens matrimoniais, onde apenas o que se origina dentro da comunidade é compartilhado. Em vez disso, é uma comunidade universal onde os bens individuais são oferecidos para o bem comum. O que pertence a um está destinado a tornar-se posse de outros. Isso não implica que os indivíduos abandonem seu próprio patrimônio cultural além do nível comunitário. Aqui, Amos Yong enfatiza os dois aspectos: uma realidade eclesial que engloba línguas e culturas e uma realidade que, apesar de sua diversidade, está fundamentalmente unida “em e através de sua pluralidade”. Portanto, a pluralidade é apresentada como uma das expressões do Uno.

Em conclusão, At 2,11-13 permite uma interpretação favorável das línguas minorizadas? Vale a pena notar que o grupo de 120 pessoas poderia ter se comunicado facilmente com apenas três ou quatro idiomas: grego koine, aramaico, hebraico e talvez latim. Portanto, o contexto não era exatamente o de uma sociedade monolíngue. Variações dialetais e diglossia enriqueceram ainda mais a paisagem linguística. Assim como em Babel, algumas interpretações tentaram ver um discurso anti-imperialista[58], mas mais uma vez o texto se mostra resistente a tal interpretação. Sem dúvida, a perícope transmite uma mensagem teológica, inaugurando uma nova era: a era da Igreja sob a orientação do Espírito. No entanto, o Pentecostes surge de forma convincente como um evento anti-Babel. Mais uma vez, as línguas assumem um papel central num processo divino, iniciado por Deus, para agir na história através da humanidade. Essa dimensão histórica, inerente ao projeto narrativo de Lucas, dá especial atenção às línguas e à variação linguística, não como agenda política, mas como meio de alcançar a verossimilhança exigida pelos cânones da historiografia antiga. Pela ação do Espírito, o grupo de 120 pessoas expressava-se em vários dialetos e línguas, mas ainda se entendia. Como mencionado acima, “eles podem falar dialetos diferentes, mas sua língua não é mais confusa ou confusa.”[59] O dom da intercompreensão foi dado pelo Espírito. Além disso, o Espírito transformou línguas em dialetos, permitindo a compreensão entre diferentes dialetos. E à medida que os dons de Deus transbordam, essa intercompreensão atinge sua perfeição máxima, concedendo a cada indivíduo a sensação de ouvir sua própria língua entendida como uma variante dialetal. Embora At 2,4-11 possa não abordar explicitamente se o empoderamento deve ser entendido como o nivelamento ou remoção de barreiras culturais para proclamar a palavra de Deus, ou se há uma reavaliação dessas barreiras, a narrativa de Pentecostes nos ensina principalmente que o Espírito leva à proclamação da Palavra, não apesar da natureza irredutível das línguas.  mas precisamente recusando-se a diminuir a sua distinção e singularidade. A Igreja, sob o impulso do Espírito, não se baseia na abolição da alteridade ou num suposto respeito pela alteridade, mas em revelar a alteridade como inteligível e familiar.

 

B. Leituras sociolinguísticas de Babel

 

Observamos que, embora uma exegese histórico-crítica possa não defender explicitamente as línguas minorizadas, certos elementos dentro dos próprios textos, como seu foco em línguas em vez de uma única língua, sua consideração da multiplicidade e da variação, e sua ênfase na dinâmica relacional da criação e da ação divina, fornecem suporte adicional para uma interpretação contextual que reconhece e valoriza a diversidade. Examinar as Escrituras a partir de uma perspectiva linguística, como explorado nas reflexões de Patrick Sauzet, oferece uma perspectiva diferente para a interpretação de textos, levando em conta seus aspectos linguísticos, a importância da multiplicidade e da variação e a dinâmica relacional da intervenção divina. Vamos agora explorar alguns exemplos de como a leitura de Sauzet lança luz sobre esses assuntos.

        

         a. Patrick Sauzet e a “língua imolada”[60]

 

A interpretação de Patrick Sauzet oferece uma nova perspectiva sobre o tema discutido, examinando-o sob dois ângulos distintos: o monolinguismo e o aspecto sacrificial. Esses dois aspectos lançam luz sobre a dinâmica subjacente do poder e da violência, especialmente em relação à narrativa que liga o Dilúvio (Gn 8,31–9,7) e Babel (Gn 11). Como destacado acima em conjunto com as ideias de Thomas Römer, a questão do status da linguagem só se torna relevante com Babel, enquanto antes disso, a linguagem permaneceu um meio compartilhado e unificado entre animais, humanos e Deus. A partir disso, os conceitos de idioleto e heteroglossia foram introduzidos no contexto de Pentecostes. A análise de Patrick Suzet nos leva a reconsiderar nosso entendimento ao afirmar: “O mito de Babel é muitas vezes mal compreendido, na minha opinião. A desordem é percebida na confusão de línguas. Na realidade, porém, é o monolinguismo que, através da busca incansável da construção de um edifício imponente (uma metáfora chocante para a competição mimética), culmina no excesso culpado e convida ao castigo divino. A dispersão das línguas e a dispersão das pessoas significam o regresso a uma ordem mais pacífica e diversificada. Se Babel representa a Babilônia, o mito pode refletir o risco inerente de desintegração dentro de um vasto império, onde as proibições miméticas diminuem gradualmente, incluindo restrições linguísticas. Somente comunidades pequenas e diferenciadas podem se proteger contra tais crises. Small is peaceful, ‘pequeno é pacífico’.”[61]Isso reintroduz a questão do imperialismo. Patrick Sauzet conclui, como discutimos anteriormente: “A diversidade linguística, seja na diversidade de idiomas ou na diferenciação dialetal, não é, portanto, um desordem.”[62] Além disso, ele oferece insights valiosos sobre a interação entre diversidade e dispersão geográfica, observando: “A homogeneidade ocorre apenas dentro do grupo mais restrito. A dialetalização assegura a ordem linguística ao selar a pertença comunitária de cada indivíduo.”[63] Esses fenômenos sociolinguísticos oferecem uma perspectiva para a compreensão da dinâmica da diferenciação. Além disso, Patrick Sauzet sugere que talvez prevaleça “a percepção de que a língua só é legitimada em sua especificidade mais extrema.”[64] São os fenômenos mais característicos de um falar, aqueles que o tornam mais reconhecível, que podem ser percebidos tanto por não-falantes quanto por falantes como a fala mais autêntica. Fora da esfera linguística, esse fenômeno lembra uma tendência na sociedade de confundir, por exemplo, no campo religioso, ortodoxia e radicalidade, onde as posições mais extremas ou os ambientes mais radicais parecem, para o leigo, mais conformes ao dogma.

No entanto, a diversidade e a diferenciação não excluem a norma, como ilustrado pela definição dinâmica que Patrick Sauzet dá à língua: “A língua é, por um lado, a competência internalizada pelos falantes, o que é mais apropriadamente chamado de gramática. Por outro lado, é uma instituição social que a torna um símbolo coletivo, objeto e instrumento de regulações. A norma, seja qual for seu grau de rigidez, está no centro da língua instituída. Ela a incorpora, mas não a resume: a norma, sendo medida, reúne as práticas que se afastam dela. Uma língua instituída é, de certa forma, o espaço de recepção de uma norma, onde conformidades e desvios se encontram. Como instituição, a língua está solidária com o conjunto das instituições de uma sociedade, sendo um dos meios e uma das referências. A suspeita de conflito sob a ordem linguística pode, portanto, ser relacionada a uma suspeita mais geral da presença da violência sob toda instituição.”[65] A distribuição das línguas, e com elas o fenômeno variacional e os fenômenos de diferenciação que acabamos de mencionar, também está relacionada com a gestão da violência.

Sauzet sociolinguista introduz a noção contemporânea de nação no contexto do episódio da Torre de Babel. Para maior clareza, preferimos o termo ‘povos’ ao invés de ‘nações’ para traduzir o גוים ou ἔθνη de Gn 10. Talvez possamos explicar a noção aqui usando o conceito político de Estado-nação. “A nação, em certo sentido, é uma Babel, uma Babel monolíngue anterior ao embaralhamento divino.”[66] Na retomada de sua exegese sociolinguística, Patrick Sauzet esclarece assim a ligação entre o monolinguismo e uma concepção de nação que pode antecipar a ideia de Estado-nação, ambas unidas em um culto ao que o linguista qualifica como indistinção. A indistinção aparece como um conceito apropriado no contexto de uma teologia sacerdotal da criação ligada às delimitações. Dis-tingere significa literalmente ‘separar, dividir’. O indistinto é, portanto, o confuso no sentido de não diferenciado. O embaraço introduzido por Deus é, assim, um embaraço que estabelece não a confusão, mas a clareza. A σύγχυσις divina (confusão) está a serviço da distinctio.

O ato divino de embaralhamento agiria contra uma sacralização do político, em particular, contra a sacralização da língua como monopólio do Estado e ferramenta política: a separação entre o religioso e o Estado “pode ser interpretada de duas maneiras opostas: ela pode significar uma relativização, uma dessacralização do político, do domínio de César distinto do de Deus. Pode, ao contrário, transferir para o Estado e para a nação o caráter absoluto e transcendente da religião, agora relegada ‘à esfera privada’. O secularismo pode, de acordo com uma interpretação, permitir um Estado absoluto, enquanto, segundo outra interpretação, pode acompanhar um Estado mais modesto.”[67] Enquanto a Tabela das Nações apresentava uma dispersão dos povos como consequência da confusio linguarum, Babel exorta à diluição das dimensões culturais e políticas. “O desalinhamento da ordem linguística e, portanto, cultural, em relação à ordem política, contribui para a dessacralização do político. A desmesura de Babel (da Babel monolíngue que constrói a torre) é a da simplicidade, um Estado, uma nação, uma língua.”[68] A pretensão totalitária de Babel lembra novamente a noção de imperialismo, cuja exegese, especialmente a de David Carr, demonstrou quão difícil era descobri-la nesses textos[69]. Afastada em favor da exegese histórico-crítica, uma leitura anti-imperialista de Babel ressurge como uma leitura sociolinguística, trazendo consigo o conceito de absoluto. Enquanto Deus se auto-limita, as instituições humanas reivindicam para si o caráter absoluto, rejeitando, para isso, as distinções linguísticas e culturais. Além disso, a conexão entre Babel e imperialismo reaparece também em uma leitura teológica do relato. Isso foi extensivamente analisado por John Dominic Crossan em God and Empire (1989).

 

         b. César e Deus (Mc 12,17; Mt 22,21; Lc 20,25)

 

Mantivemos um argumento a favor da noção de imperialismo na análise histórica de John Dominic Crossan. Primeiro, é importante notar que David Carr destaca interpretações de longa data de Babel como uma crítica ao Império[70]. Por outro lado, Crossan nos lembra que a frase “Filho de Deus” se refere a uma realidade histórica. No mundo de Jesus, que estava à margem do Império Romano, a expressão “Filho de Deus” referia-se inequivocamente ao imperador romano. Crossan enfatiza esse ponto em sua importante obra intitulada Deus e Império: Jesus Contra Roma, Então e Agora (2007): “Havia um ser humano no primeiro século que era chamado de ‘Divino’, ‘Filho de Deus’, ‘Deus’ e ‘Deus de Deus’, cujos títulos eram ‘Senhor’, ‘Redentor’, ‘Libertador’ e ‘Salvador do mundo’. [...] E a maioria dos cristãos provavelmente pensa que esses títulos foram originalmente criados e aplicados exclusivamente a Cristo. Mas antes de Jesus existir, todos esses termos pertenciam a César Augusto.”[71] O argumento de Crossan gira em torno dos primeiros cristãos atribuindo esses títulos a Jesus como uma forma de negá-los a Augusto: “Eles tomaram a identidade do imperador romano e a deram a um camponês judeu. Ou isso era um escárnio peculiar e muito baixo, ou o que os romanos chamavam de majestas e nós chamamos de alta traição.”[72]

A demonstração de Crossan em God & Empire (2007) continua em sua recente obra, Render Unto Caesar (2022), ao examinar o episódio sinótico de homenagem a César (Mc 12,17; Mt 22,21; Lc 20,25). Ao dizer que os assuntos de César devem ser entregues a César e os assuntos de Deus a Deus, fica implícito que César não é Deus: “César e Deus não estão identificados.”[73] Em outras palavras, Jesus reintroduz a distinctio. No entanto, precisamente, “se César e Deus não são identificados ou equiparados, como eles se associam, acomodam, adaptam, assimilam ou aculturam um ao outro no mundo real em que todos vivemos?”[74] Crossan acredita que esses cinco verbos “representam a clássica ladeira escorregadia em direção à aculturação plena”[75], que ele define como: “uma integração profunda na cultura circundante para que você nade nela suavemente, sem consciência e sem pensamento crítico nela, como peixes.”[76] As palavras do ex-padre e historiador das religiões são particularmente duras nesta matéria: “A aculturação é o lastro da normalidade, a sedução do conformismo, a maldição da busca do sucesso que pode, sob certos líderes, em certas circunstâncias, em certos momentos e lugares, transformar alguns de nós em monstros, muitos de nós em mentirosos e a maioria de nós em covardes.”[77] Aqui não podemos reproduzir a totalidade da argumentação histórica de Crossan, especialmente no que diz respeito à romanização da Gália. Focalizamos o que o homem de fé e historiador reconhece a respeito do tratamento do tema da aculturação no Novo Testamento, que ele descreve como “a questão do governo divino e da aculturação humana.”[78] A gravidade (the drag), a ilusão (the lure) e a maldição (the curse) estão associadas a modos de indistinção (normalidade, conformidade) ou de uma temporalidade (rotina ou uma ambição profissional desmedida) que inevitavelmente levam à insensibilidade, ao hábito, ou seja, à aceitação do inaceitável. A aculturação é falar, viver, pensar na língua do mestre, na língua do mundo, e não na do Senhor.

Segundo Crossan, o Novo Testamento aborda a questão da aculturação de duas maneiras antinômicas, 1o demonizando a aculturação no Livro do Apocalipse, ou 2o canonizando-a no diptico Lucas-Atos. O historiador questiona, a partir dessa antinomia, a possibilidade de fazer uma “crítica radical da aculturação como o caminho a seguir (the way forward) para a fé cristã.”[79] Ao fazer isso, a demonstração ressoa com a pesquisa sobre o Jesus histórico, quando Crossan contrasta uma paz obtida pela força e subversão (a de César) com uma paz obtida pela justiça (a de Deus). Isso reflete uma das hipóteses sobre o Jesus histórico propostas por Adriana Destro e Mauro Pesce, a de um Jesus que 'anunciava a iminência do juízo final por Deus, no qual seriam derrubadas as relações injustas que eram consideradas, paradoxalmente, como a ordem social.”[80]

Mas, mais uma vez, o que podemos retomar de Crossan, Carr ou Destro-Pesce? Podemos falar na língua de César para descrever a subversão das línguas reduzidas a instrumentos de poder e incapazes de abraçar a criação em suas dimensões relacionais? Essa subversão da linguagem difere da ambivalência fundamental da linguagem, ou é apenas um aspecto dela?

 

         c. Abel e Caim

 

            Após mencionar o poder, retrocedemos para a violência e seu surgimento. Para abordar essa violência, até agora, citamos o episódio do Dilúvio, conscientemente ignorando a primeira manifestação espetacular da violência na narrativa do Gênesis, a história de Caim e Abel (Gn 4,1-16). Esse “par fundador”[81] é uma das figuras implícitas da diglossia. Embora Patrick Sauzet não cite explicitamente Caim e Abel, ele aplica o modelo girardiano aos funcionamentos linguísticos, questionando a dimensão sacrificial. John Dominic Crossan avança, por sua vez, que, segundo a tradição bíblica, “a civilização começou imediatamente com o fratricídio”[82], mais precisamente com “o assassinato de um pastor por um agricultor em sua própria fazenda.”[83] E como Caim é o fundador da primeira cidade (Gn 4,17), “Caím, o introdutor da violência, é ainda identificado como o pai - ou avô - da cultura sedentária ou da 'civilização' [...] Essa história corresponde perfeitamente à compreensão de que o excedente agrícola, eventualmente, levou a um aumento do individualismo, da agressão, da guerra e da ganância.”[84] A obsolescência de uma conduziria naturalmente à sua eliminação. Este é o argumento frequentemente invocado contra as línguas minorizadas. Diz-se que as línguas são como Abel, a sua mortalidade é inevitável[85]. No entanto, mais do que a obsolescência, a história parece destacar a redundância. Isso fica evidente quando se considera o caso de outra dupla fundacional, a saber, o par franco-occitano: “O par fundador das duas línguas, com a supremacia de uma emergindo da eliminação da outra em um contexto de equivalência fundamental, ilumina a percepção da situação occitana como um conflito oculto. Para que haja um conflito linguístico efetivo, as duas línguas deveriam poder reivindicar cada uma a mesma dignidade, o mesmo estatuto. No entanto, isso está previamente resolvido: reivindicar a dignidade linguística do occitano é questionar a própria instituição do francês.”[86] O advento de um é a condição para a degradação do outro.

Patrick Sauzet lança luz não apenas sobre “o emparelhamento das duas línguas”[87], mas também sobre a interação refletida associada a essa associação. Uma língua poderia ter sofrido o destino da outra, de acordo com o tema essencial da “escolha aleatória”[88] Somos sempre a outra do outro, mas no caso do francês e do occitano, um parceiro alcança sua liberdade ou libertação pessoal submetendo o outro a uma situação de cativeiro contínuo ou refém. O efeito pode ser menos radical do que no caso de Caim e Abel, mas ambos os modelos compartilham uma dimensão inaugural: “A redução do occitano não é um efeito marginal do advento do francês, mas está em seu próprio fundamento.”[89] Um aspecto saliente reside na distorção da realidade, acompanhada de uma estratégia deliberada de exclusão. Nessa estratégia, a língua dominante se apresenta como ameaçada[90], enquanto a língua subjugada é declarada prematuramente morta[91], apesar de sua existência vibrante. O crime garante uma reescrita da realidade: o desaparecimento do outro resolve o problema da alteridade. Além disso, a negação da alteridade torna inútil o desaparecimento físico do outro, uma vez que ele não tem existência no mundo hegemônico. Diante dessa distorção da realidade, Deus intervém para restaurar o real perguntando: “Onde está seu irmão Abel?” (Gn 4,9).

O real é que essa violência fraternal, no sentido restrito, não se limita a essa dimensão familiar. Essa violência fraternal é, de fato, uma violência de alcance universal. Por ser uma violência entre seres humanos, ela constitui “uma ofensa contra Deus e uma maneira pela qual os humanos poluem o solo do qual dependem.”[92] Uma dimensão ecológica, portanto, abrange as questões relacionadas à interação entre violência e poder, às quais se adicionam as questões relacionadas à dominação[93]. É a perda de relação e diálogo com Deus[94], e não particularmente a impulsividade ou a raiva de Caim, que leva à poluição da terra. Mesmo que essa dimensão se estenda universalmente até incluir a terra, mesmo que ela seja destruída, a dimensão relacional permanece no cerne desse relato.

A poluição, no relato de Abel e Caim, é o resultado lamentável de uma queixa nascida dos sacrifícios respectivos dos dois irmãos e de sua recepção por Deus, ou seja, de um ato que tem um propósito exatamente oposto. Os sacrifícios no sentido do Antigo Testamento pretendem que a vítima sacrificada seja santificada (sacrum facere)[95]. A dimensão sacrificielle, e particularmente aquela que gostaria que um dos dois membros de um casal fundador se sacrifique, é destacada por Patrick Sauzet na retórica centralizadora do abade Grégoire: “Grégoire pede aos Franceses do Sul, aos Occitanos, que sacrifiquem sua língua à unidade (linguística) nacional (‘Nossos irmãos do Sul [...] renunciaram e combateram o federalismo político; eles combaterão com a mesma energia o federalismo dos idiomas.’).”[96] Ao contrário da lógica sacrificielle do Antigo Testamento, aqui “a recusa, muitas vezes violenta, do termo occitano, da nomeação clara dessa língua, inscreve-se na lógica sacrificielle. O sacrificado é innominável, tabu.”[97] Patrick Sauzet conclui assim: “A hipótese, portanto, é que a língua francesa também se estabelece sobre o sacrifício. A eliminação das outras línguas não é uma consequência do sucesso do francês, mas sua condição.”[98] Essa dimensão sacrificielle, no entanto, deve ser nuancée, seja que se retenha a lógica sacrificielle vetero-testamentária, seja que se entenda por sacrifício o fato de impor a si mesmo uma privação. Aqui, o sacrificado é o outro do casal fundador. Não há renúncia ou esforço próprio, mas execução do duplo. A alteridade não é suportada; ela é liquidada. Finalmente, e sobretudo, a lógica sacrificielle bíblica não é respeitada. Lembre-se, de fato, entre os sacrifícios mencionados no Antigo Testamento, dois sacrifícios que parecem particularmente significativos em relação ao nosso assunto: o sacrifício pelo pecado (Lv 4,1-5,13) e o sacrifício de reparação (Lv 5,14-26). Aqui, encontramos a tradição sacerdotal e sua preocupação com a dimensão relacional: o nome desses dois sacrifícios designa, de fato, “a afronta à relação que eles servem para restaurar.”[99] A noção de reconhecimento aparece com eles. Por um lado, esses sacrifícios “implicam um reconhecimento da falta cometida.”[100] Por outro lado, os pecados “cometidos deliberadamente e como um desafio ao Senhor são excluídos”[101] (Nm 15,30-31). A execução do duplo não preenche esses critérios vetero-testamentários. Aqui é a exegese teológica que permite rejeitar completamente as justificações sacrificiais e contribuir para reconhecer a vítima como tal.

 

d. A lingua dos pobres

 

Rejeitar a dimensão sacrificielle permite restabelecer a realidade do mal. A dominação linguística contribui para a dominação social e econômica. Se, de acordo com Jacques Dupuis, “em [Cristo] é revelada e incorporada a contradição existente entre Deus e os pobres que sofrem a opressão pelas mãos dos ricos”[102], os falantes das línguas minorizadas, por sua vez, às vezes têm a impressão de que uma “língua dos pobres se adequa melhor para celebrar a kenose do Verbo.”[103] Eles são sensíveis à simbologia do Filho que buscou a companhia dos pobres e desprezados. Do ponto de vista das línguas minorizadas, oferecem uma compreensão íntima e familiar da mensagem cristã, onde, nas palavras de Aloysius Pieris, “Jesus é [...] o pacto de defesa entre os oprimidos e Yahweh.”[104] Pode-se pensar em Mt 19,24 ou nos acentos anabatistas preocupados em dissociar a Igreja das instituições de poder político ou econômico. Se é mais fácil para um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que para um rico entrar no reino de Deus, o que dizer de um evangelho anunciado na língua dos ricos, ou seja, pelo menos aquela que aparece assim devido ao prestígio a ela associado, ou porque, esse prestígio decorrente do poder, pode-se atribuir a ela um poder equivalente aos ricos. Christopher Rowland destaca isso em relação à teologia da libertação: “Visto do ponto de vista de baixo da história, dos pobres e marginalizados, a mensagem do reino parece bastante diferente da forma como foi retratada por aqueles que puderam (have had the power) escrever a história da Igreja e formular seu dogma e suas preocupações sociais.”[105] Além disso, como destaca o teólogo de Oxford, a teologia da libertação nos lembra “com vigor (forcibly) que a empresa teológica contemporânea não pode escapar a uma reflexão crítica sobre seus pressupostos (assumptions) e suas preferências.”[106] No entanto, a dominação linguística raramente é exposta como um desses pressupostos ou opções. Isso se deve em parte à opacidade da dominação linguística, como destaca Patrick Sauzet: “O que permanece opaco [...], é a própria dominação linguística. Não seu desdobramento nas práticas da sociedade, não sua emergência e desenvolvimento históricos (todo sociolinguista se dedica a descrever isso), mas sua capacidade mesmo de se instalar nos usos da linguagem, de (des)organizá-los.”[107] Ao casal violência-poder e ao da dominação, deve-se finalmente adicionar o tema da subversão. A ambivalência aqui se deve menos à linguagem em si do que aos jogos de dominação aos quais ela se presta.

 

C. Redirecionamento da questão. Uma exploração temática

 

         a. Violência, poder e dominação

 

Em contraste com o antigo discurso filosófico sobre o poder da linguagem e a linguagem do poder, a exegese revela a preexistência do Verbo, agente de potência performativa e criadora, atributo de um Deus transcendente que inicia e restabelece perpetuamente uma dinâmica relacional com seus seres criados. A potência divina, em contraste com a agência humana, é caracterizada por limitações auto-impostas, enquanto as aspirações humanas de poder muitas vezes resultam em uma descida perpétua em ciclos de violência e luta pela hegemonia. O relato bíblico evita correlacionar diretamente a violência ou a dinâmica de poder (por exemplo, os encontros de Deus com a humanidade em Gn 11) com a linguagem. Ao contrário, limita-se a elucidar a origem das línguas como consequência dessas relações de poder. A confusão de línguas não está intrinsecamente ligada à desobediência humana, mas emana do embate entre a soberania do Criador e o arbítrio de Suas criaturas. A diversidade linguística e a variação linguística servem para evitar o caos iminente, orquestrando a dispersão dos humanos pela Terra. Essa dispersão, ainda palpável na contemporaneidade, gera divisões que extrapolam as fronteiras de povos distintos e permeiam os próprios grupos sociais. Essas fronteiras têm uma profunda conexão com a dinâmica do poder e estão intimamente relacionadas ao intrincado fenômeno da linguagem. De fato, o fenômeno da variação linguística transcende a mera fonologia, morfologia ou prosódia, abrangendo as profundas implicações sociais inerentes a usos linguísticos particulares, entonações que engendram linhas coerentes de pensamento e tons sutis de superioridade ou desprezo. “A linguagem é parte integrante da vida social, com todas as suas artimanhas e iniquidades, e boa parte da nossa vida social consiste na troca rotineira de expressões linguísticas no fluxo cotidiano da interação social.”[108] A linguagem serve rotineiramente de palco para a realização de estratégias sociais, onde modelos de prestígio e poder se entrelaçam. Nesse contexto, a capacidade de humilhar, ridicularizar ou alcançar ascensão social, genuína ou fingida, depende muitas vezes da adoção da linguagem do dominante. As implicações teológicas de tal construção são tudo menos neutras. Como interpretar uma situação em que nós, como indivíduos ou como comunidade religiosa, empregamos exclusivamente a linguagem do dominante, enquanto a linguagem do dominante é apresentada como a linguagem do Senhor?

 

         b. A língua de César

 

Esse processo de desescalada no confronto entre o poder divino e o poder humano pelo pluralismo linguístico, mas também, dentro da linguagem, pela fragmentação das relações de poder, encontra uma tradução histórica entre as línguas dominantes, línguas de aculturação ao mundo, línguas de César, e, por outro lado, a Palavra que continua a chamar para buscar a paz não pela força, mas pela justiça. A existência de línguas de César, línguas que afirmam a força, a uniformização, uma “Babel da ideologia”[109], uma unidade buscada e sustentada pela linguagem, é suficiente para conceder um status teológico às línguas vítimas desses conflitos linguísticos? É possível dizer de cada língua o que Geffré diz de cada figura religiosa: cada língua mantém “algo irreduzível na medida em que pode ter sido suscitada pelo próprio Espírito de Deus”[110]?

           

         c. O caráter relacional e o real como requisito

 

Em vez de um Deus distante, a exegese revela um Deus em íntima relação com a humanidade. Essa dimensão relacional encontra sua expressão mais prática no campo do diálogo. No contexto do discurso religioso, essa dimensão emerge como uma das condições de acesso à universalidade[111]. Ao fazer uma analogia entre pluralismo linguístico e pluralismo religioso, torna-se imperativo desabsolutizar as línguas hegemônicas, assim como as religiões são chamadas a aceitar “as consequências de sua historicidade.”[112] A natureza relacional desse paradigma perturba aqueles que ocupam posições de poder, pois desafia a absolutidade de sua dominação. No entanto, serve como um lembrete necessário da realidade, não apenas como um pré-requisito para a paz enraizada na justiça, mas também como um interessante chamado a perceber a realidade como ela realmente é, em vez de através das lentes distorcidas dos poderes dominantes.

 

         d. O múltiplo contra a idolatria

 

O múltiplo se revela como a vontade divina. Deus não pode condenar a pluralidade de línguas: “Ele não condena a pluralidade de línguas e, portanto, de culturas, porque isso é mais um retorno à condição original desejada por Deus.”[113] O múltiplo é uma expressão do Uno, seja através da natureza, mas também, de maneira especial, através do ser humano. Deus não quer ser idolatrado, ou seja, fetichizado como Uno. Isso não contradiz o Shema Israel (Dt 6,4). Se Deus exige um culto a Ele sozinho (Ex 20,3), Ele também proíbe qualquer forma de idolatria. A questão, então, é se a idolatria consiste em adorar outra potência - ou suposta potência - que não seja Deus, ou se há uma forma de adoração - a idolatria - que é proibida por Deus, mesmo que Ele seja o destinatário. Vemos no V'ahavta[114], que segue imediatamente o Shema, uma indicação de como Deus espera ser adorado: “tu amarás”. Certamente, o versículo Dt 6,5 continua com “de todo o teu coração, de toda a tua alma, de toda a tua força”, este “todo” novamente sugere a ideia de absoluto, mas este versículo é, de fato, um apelo para que cada um, em sua integridade e totalidade, ame a Deus. Idolatrar Deus seria adorá-Lo no modo do Uno, renunciando ao coração, à alma, à força. Pelo contrário, é na multiplicidade dos corações, almas e forças que Deus pede que um culto lhe seja prestado. A análise de Patrick Sauzet, ao adicionar a dimensão sacrificiária, convida a ver como a humanidade é tentada a se sacrificar a si mesma, mesmo que isso implique sacrificar a obra do Criador. Contra essa aspiração absolutista, Deus se revela como uma potência capaz de se auto-limitar.  

A teologia das religiões oferece uma valorização particularmente clara do múltiplo. Isso é especialmente evidente em Claude Geffré, cuja exegese teológica de Babel e Pentecostes se alinha com as apresentadas anteriormente. Geffré tem tons muito próximos da  perspectiva de Patrick Sauzet: “O que Deus condena é uma unicidade linguística que teria a ambição idolátrica de substituir o Deus único por uma humanidade monolítica que se faria deus a si mesma.”[115] A exegese de Claude Geffré, situada no contexto de seu comprometimento e de sua obra teológica a serviço da Palavra, por meio da teologia inter-religiosa, pode ser lida como uma teologia do pluralismo linguístico ainda mais revitalizante e reconfortante, pois está enraizada nas Escrituras: “Sempre interpretaram a dispersão das línguas como um castigo em resposta ao orgulho dos homens que quiseram construir uma torre única que fosse rival da unicidade de Deus.”[116] À unicidade de Deus não pode corresponder uma unicidade linguística. As forças de homogeneização são fundamentalmente idolátras, ou seja, buscam realizar uma redução de Deus. Sacrificar o múltiplo não é adorar a Deus. E Deus não pode ser invocado para condenar o múltiplo. A unicidade de Deus não está em questão. Deus é Um. Mas Deus não quer ser adorado como uma ídolo. Ele pode ser adorado em, e por meio do múltiplo, através da figura tão singular de Jesus de Nazaré.

 

         e. Encarnação e história

 

            “O Deus da Bíblia abençoa o multiplo, assim como abençoa a condição humana como histórica e carnala.”[117] Após uma afirmação que sintetiza perfeitamente tudo o que este estudo pretende transmitir, pode-se concluir. Essa valorização da diversidade, no entanto, se dá por meio da “completa singularização do universalismo na pessoa de Jesus.”[118] Deus revela-se de modo singular em Jesus, ao mesmo tempo que se dá a conhecer na história. Embora o múltiplo seja uma expressão do Um na história ou através da criação, ele não é conhecido como o múltiplo em si; Revela, no particular, um particular que, por sua importância, não é uma ilustração do universal; A Encarnação não é um avatar, mas sim o sinal de que o universal deve ser compreendido a partir desse ponto de vista particular. Nesse sentido, Jesus Cristo é verdadeiramente o concretissimum universale, não o universal concretizado. O universal não inventa nem nega o concreto, mas através da Encarnação, cada pessoa, cada expressão única e singular do concreto, está unida a Cristo. O universal, entendido através dessa reunião de indivíduos, não é uma fusão do concreto no cadinho do universal, mas se apresenta como a unção do concreto, que é a pessoa humana, “elevada à unidade.”[119]

            Além disso, vale ressaltar que Claude Geffré utiliza o argumento do pluralismo linguístico para justificar, no sentido teológico mais pleno, o pluralismo teológico: “Se a pluralidade de línguas e culturas é abençoada por Deus, não deveríamos também dizer que a pluralidade das tradições religiosas é reconhecida e até desejada por Deus?”[120] O teólogo estende sua exegese também às culturas: “Com a efusão do Espírito do Ressuscitado no Pentecostes, é legítimo pensar que a pluralidade de línguas e culturas é necessária para transmitir a riqueza do Mistério de Deus.”[121] A emergência da noção de mistério aqui nos levará a examinar a questão mais especificamente a partir de uma perspectiva teológica protestante.

 

         f. O universal e a lei do amor

 

As narrativas da Tabela das Nações e da Torre de Babel são enquadradas por dois eventos em que a relação de Deus com a humanidade tem significado universal, a saber, a aliança feita com Noé (Gn 9) e o chamado de Abraão (Gn 12). A questão da universalidade é acompanhada de limites: “Pode-se ver na realização fracassada da Torre de Babel uma crítica a uma falsa concepção de universalidade. Israel deve abster-se de alcançar a universalidade através da conquista e da hegemonia.”[122] O enquadramento da Tabela dos Povos e da Torre de Babel situa essas narrativas dentro de uma lógica histórica e teológica, “o universalismo cada vez mais explícito da lei de amor”[123], da qual a encarnação é a manifestação perfeita.

 

         g.  Interação entre pluralismo linguístico e pluralismo religioso

 

A conexão entre os temas do pluralismo linguístico e do pluralismo religioso[124] leva-nos quase a considerar a questão das “línguas” como não relevante do ponto de vista teológico. Só que, como vimos na exegese teológica da Tabela dos Povos, o pluralismo linguístico goza de uma justificativa bíblica que o pluralismo religioso não tem. Que ligação nos permite estabelecer a nossa exegese teológica entre a diversidade das línguas e o pluralismo religioso? A dispersão das religiões poderia ser consequência do confusio linguarum, assim como a dispersão dos povos? André Gounelle nos lembra que o próprio Karl Barth estabelece a conexão entre Babel e a religião: “Barth vê na religião uma tentativa dos seres humanos de se apegar a Deus, de capturá-lo e domá-lo em vez de se submeter a ele e servi-lo, de imaginá-lo em vez de ouvir sua palavra, de se fazer justo em vez de se reconhecer como pecador. A Torre de Babel poderia simbolizar a religião: seus construtores querem subir ao céu por seus próprios meios, enquanto a Bíblia nos ensina que Deus desce entre os seres humanos.”[125] Nessa perspectiva, o pluralismo religioso ou linguístico é um convite a meditar sobre a unidade de Deus, em vez de construí-la sobre uma concepção puramente humana do Uno. Geffré coloca isso em termos proféticos: “Os teólogos terão cada vez mais que suportar intelectualmente o enigma de uma pluralidade de tradições religiosas em sua diferença irredutível.”[126] É preciso estar atento a essa distinção, uma das muitas que a conexão entre os temas do pluralismo linguístico e do pluralismo religioso é que a grande diversidade de línguas e a variação linguística não precisam suportar o enigma teológico de sua pluralidade e diferença irredutível. Estes últimos são a vontade de Deus e encontram uma justificativa bíblica que as tradições religiosas, às vezes não tão gentis com o pluralismo linguístico, não desfrutam. A existência das línguas na sua forma mais irredutível e variável pode ser harmonizada com uma teologia da criação que se preocupa em combater o caos[127], envolver-se na história humana e contribuir para a criação de um mundo novo ou constantemente renovado. As tradições religiosas, por outro lado, enfrentam o mistério de sua pluralidade, a questão de sua contingência e historicidade.

 

         h. A teologia pode dar conta de uma pergunta assim?

 

            Do ponto de vista da teologia das religiões, a questão do pluralismo linguístico parece surpreendentemente simples e clara. Em primeiro lugar, o pluralismo linguístico tem uma justificação bíblica que é escassa na abordagem do pluralismo religioso. Este é o julgamento de Claude Geffré, cuja experiência e prática do diálogo inter-religioso nos exorta a prestar atenção: “Teremos grande dificuldade em encontrar uma resposta para a questão da pluralidade das religiões na Bíblia.”[128] Repetimos isso aqui porque, alternativamente, a pergunta poderia ser: é possível abordar a questão das línguas minorizadas a partir de uma perspectiva teológica protestante? A esse respeito, oferecer uma justificação bíblica parece, à primeira vista, uma vantagem na teologia protestante, mesmo que esta tenha dispensado a noção de sola scriptura[129].

Outro possível obstáculo envolve o risco de cair em uma teologia natural ao procurar identificar línguas minorizadas como locais explícitos da ação de Deus. Essa hesitação lembra a distinção anterior feita na introdução entre “substância católica e princípio protestante”[130].  Geffré, baseando-se nas ideias de Tillich como teólogo da cultura[131], navega habilmente entre quadros teológicos católicos e protestantes: “Seja na Dogmatik de 1925, nas Lições que se seguiram ao seu seminário com Mircea Eliade, [Tillich] medita constantemente sobre o cristianismo como uma religião não absoluta que, no entanto, testemunha a revelação final. É possível afirmar a ressonância católica de sua teologia na medida em que ela se distancia igualmente do orgulho da teologia dialética e do neoliberalismo, que está disposto a sacrificar a norma cristológica para facilitar o diálogo inter-religioso.”[132] Geffré abraça as palavras do ex-assistente de Tillich, que o considerava “o mais ‘católico’ dos teólogos protestantes”[133]. Ao considerar as línguas minorizadas, devemos falar de teologia natural ou teologia da história, tendo em mente a frase com que Claude Geffré resume a tese do teólogo católico Edward Schillebeeckx: “Deus nunca deixa de narrar-se na história”[134]? De fato, as questões levantadas por teólogos católicos como Edward Schillebeeckx, Jacques Dupuis ou Claude Geffré sobre o pluralismo religioso não parecem se aplicar com a mesma força ao pluralismo linguístico. Quando perguntam “se esse pluralismo factual não nos leva de volta a um pluralismo de princípios ou jurídico que está sob o misterioso desígnio de Deus”[135], no caso específico do pluralismo linguístico, as Escrituras respondem. É a favor do pluralismo linguístico de jure, como já foi referido[136]. A convergência de perspectivas poderia ser alcançada considerando as culturas como uma extensão das línguas e, posteriormente, das religiões? Geffré entrelaça culturas e religiões, reconhecendo sua ambiguidade inerente[137]. Embora a ambiguidade seja frequentemente associada à linguagem, as narrativas bíblicas não atribuem o mesmo nível de ambiguidade às próprias línguas. É crucial não impor elementos de outras narrativas da criação ao relato bíblico: “Os relatos bíblicos não especificam um dom da linguagem para o homem. [...] Em Atrahasis, a linguagem surge como um presente ambíguo que os deuses conferiram aos homens.”[138] Assim, a ambiguidade ou ambivalência, se presente, pode se manifestar por meio de outros conceitos além da própria linguagem, como a interação entre um e o múltiplo ou o outro e o mesmo. Esses conceitos merecem maior exploração após um exame das relações entre linguagem, línguas e a Palavra.

 


 

II. Linguagem e teologia: relação entre a Palavra e as línguas

 

Se as línguas têm sua origem em Babel, a linguagem primordial, por sua vez, encontra sua origem em Deus. Robert W. Jenson questiona assim como a linguagem começa: “Como se inicia nosso discurso? A fala pressupõe a linguagem, mas a linguagem pressupõe a fala; muito provavelmente, deve haver um primeiro Orador, no discurso do qual a distinção entre a fala e a linguagem não tem curso.”[139] No entanto, esse questionamento mantém dois elementos do mito das origens: a genealogia pretende remontar aqui ao próprio criador, e, ao fazer isso, o raciocínio substitui as línguas pela noção de linguagem. No entanto, a língua única e comum a animais, humanos e a Deus é apenas um implícito do texto bíblico. O que é primordial é muito mais a Palavra do que a linguagem. Com base na revelação, o modo de expressão de Deus não é, de fato, nem o Um, nem o Múltiplo, nem mesmo a linguagem, mas sim a Palavra. O status teológico das línguas surge no contexto dessa relação fundamental. Elas não estão aqui subordinadas à noção de linguagem ou a qualquer hierarquia que aproximaria a linguagem de Deus e afastaria as falas locais. As genealogias pretendem menos dizer algo sobre o passado do que apontar para este presente absoluto, encarnado no homem da Galileia.

 

Primeiro, exploraremos o significado teológico das línguas em relação à Palavra, buscando compreender seu status inerente. Em seguida, mergulharemos nas perspectivas de teólogos que conectam línguas com pessoas específicas da Trindade. Finalmente, examinaremos a intrincada conexão entre as línguas e a Palavra através de três dimensões distintas: a dinâmica intra-trinitária entre as pessoas divinas, o vínculo comunitário que os seres humanos são chamados a promover uns com os outros e a profunda conexão entre a relação de Deus com a humanidade.

 

O significado teológico das línguas em relação à palavra

 

Tomás de Aquino apresenta uma perspectiva intrigante sobre a natureza das línguas, refletindo tanto ambiguidade quanto apreciação. Por um lado, reconhece o papel das línguas como meio de comunicação, reduzindo-as a uma ferramenta[140]. No entanto, Aquino também reconhece o valor teológico das línguas, como evidenciado pela escolha intencional de Deus para que os apóstolos falassem em várias línguas. O argumento de Aquino antecipa as questões levantadas por Calvino[141] e lança luz sobre o debate em torno da diversidade, linguística ou não. Deus não ignorou os dialetos, nem desejou que Sua vitória fosse óbvia. Mas o argumento do médico angélico baseia-se numa redução das línguas à sua natureza de instrumento de comunicação. As línguas não foram ignoradas, mas o que foi conseguido através delas poderia certamente ter sido conseguido através de uma única língua que transmitisse uma mensagem simples. É essa compreensão das línguas que está em jogo entre os opositores da diversidade linguística ou aqueles que argumentam que a língua é simplesmente uma ferramenta de comunicação.

Em contraste, Aquino valoriza a diversidade linguística[142] e a identifica como um remédio contra a idolatria, associada à Torre de Babel. Embora o dom de línguas possa não ser tão evidente hoje, Aquino, inspirado em Agostinho, argumenta que a Igreja agora fala todas as línguas[143]. Isso enfatiza a importância de entender a linguagem dos outros. A notável capacidade dos apóstolos não era apenas fazer-se entender, mas compreender genuinamente as línguas daqueles que os rodeavam: “Tocava à perfeição da sua ciência, pois eles não só podiam falar, como também entender o que os outros diziam.”[144] Seguindo o argumento de Tomás, portanto, é apropriado acrescentar que Pentecostes é a intenção deliberada de Deus de não limitar a compreensão ou expressão a uma única língua ou torná-la compreendida por uma única língua, seja a língua dos apóstolos, mas sim a decisão intencional de Deus de facilitar a compreensão recíproca universal pelos apóstolos por meio de dialetos e variantes locais.

 

Outro aspecto intrigante surge quando Tomás compara a glossolalia e o dom da profecia, contemplando qual dos dois carismas tem precedência, implicando uma superioridade da profecia baseada em dois critérios que envolvem uma compreensão ambivalente, mas geralmente positiva, da linguagem. Primeiro, a profecia é inequívoca[145], enquanto a linguagem continua sendo um reino de ambiguidade. Em segundo lugar, o fato de a glossolalia não envolver intercompreensão humana ou utilidade[146] não é atribuído a seu favor. Inteligência e utilidade, longe de serem sinais de inferioridade, são apresentadas como argumentos a favor da profecia. Poderiam também ser argumentos a favor da linguagem? É o que sugere Tomás: “Pelo dom de profecia, o homem se ordena a Deus segundo o espírito, o que é mais nobre do que ordenar-se a ele segundo a linguagem.”[147] De fato, os seres humanos são ordenados a Deus através da linguagem, mas em menor grau do que se fosse através do Espírito. Não se trata de conferir à língua um estatuto mais amplo do que o de instrumento de comunicação. Pelo contrário, a profecia é considerada superior à glossolalia porque fala aos seres humanos. A ordenação a Deus na profecia reside no fato de que, por meio dela, o Espírito dirige os seres humanos para Deus e para o próximo. Mas o que dizer dessa ordenação através da linguagem, ainda que menos perfeita, que Tomás, aliás, nos convida a questionar?

 

B. A ordenação das línguas a Deus

 

            Segundo Tomás, a perfeição da profecia reside em dois elementos: o motor da mediação e sua orientação. Implicitamente, somente o Espírito pode perfeitamente direcionar os seres humanos para Deus e seus semelhantes. Seguindo essa lógica, o estatuto teológico das línguas poderia ser avaliado em termos da ação particular do Espírito através das linguagens e de sua orientação para Deus a serviço dos outros. Por outro lado, o relato de Pentecostes já retrata as línguas como vindas de Deus. Eles são descritos como fluindo do Espírito. A inteligência e a utilidade descritas por Tomás estabelecem as condições para a edificação da Igreja, que pode ser entendida como orientada para Deus e para os outros. A ambiguidade linguística não está presente aqui, mesmo quando a pluralidade de línguas é adicionada. Enquanto a profecia restaura o imediatismo, no Pentecostes, a linguagem parece manter parte de seu papel mediador. Durante o tempo de Pentecostes, as pessoas presentes são ordenadas a Deus de acordo com o Espírito em linguagem distinta da profecia.

 

         a. Distinção entre Logos e Linguagem

 

            O Logos, como “automanifestação de Deus tanto no universo quanto na história”[148], nos lembra que Deus é sempre revelado no espaço e no tempo através da particularidade, e qualquer tentativa de manifestar Deus como um absoluto ou uma abstração cai na idolatria. O prólogo do Quarto Evangelho afirma: “O Verbo era Deus” (θεὸς ἦν ὁ λόγος Jo 1,1). O termo “Palavra” significa que Deus é um Deus pessoal. Sua Palavra é uma expressão pessoal. Através do termo Logos, a teologia refere-se a Cristo. Portanto, o termo não pode ser entendido, em um contexto cristão, como “a linguagem era Deus”. Mais uma vez, a noção de linguagem está ausente. A Palavra não é, por exemplo, um uso pessoal descolado da linguagem entendida como uma faculdade inata de comunicação de uma espécie, tipicamente humana. Também não é o uso pessoal de uma língua específica, que é adquirida e praticada. No máximo, se levarmos em conta que o Logos aponta para a Encarnação, a noção de Logos se harmonizaria com a de uma gramática universal (UG), destinada a tomar forma na realidade concreta. A analogia enfatizaria que a manifestação do Logos só pode ocorrer no tempo e no espaço.

            Em primeiro lugar, devemos notar que essa automanifestação ocorre marcadamente através da singularidade de uma linguagem, a do autor do quarto evangelho. A inefabilidade de Deus está em tensão entre a necessidade do autor de inventar sua própria linguagem e a necessidade de recorrer à linguagem comum. Encontramos nessa polaridade algo semelhante à distinção de Ferdinand de Saussure entre “a força do intercurso e o espírito de campanário.”[149] Saussure refere-se à força da troca como o que “obriga [os homens] a se comunicarem entre si.”[150] Apresenta-se como um “princípio unificador”[151]: as trocas humanas levam à homogeneização da linguagem em detrimento das variantes locais. O espírito de campanário é o princípio oposto: se não fosse impedido pela força do intercurso, “criariam, em matéria de linguagem, particularidades que iriam até o infinito.”[152] Saussure não o menciona, mas a observação inversa poderia ser feita: se não fosse impedida pelo espírito de campanário, a força do intercurso criaria na linguagem uma unidade ou coesão sem um traço do que foi unificado e suprimido. Assim, Jules Ronjat poderia dizer que a língua comum ou koine é uma “Moeda de câmbio sem marca e que tem curso em todo lugar.”[153]. Da mesma forma, a língua joanina reflete o elemento particularista de uma teologia ou escola, a escola joanina, enquanto se expressa no koine representando o grego pós-clássico. A extensão e a coesão da linguagem teológica são possíveis aqui graças a uma chave de decodificação apresentada no prólogo do Evangelho (Jo 1,1-18): “O discurso introdutório é um instrumento de controle da decodificação. Ele orienta a leitura, defende o texto contra o texto introdutório é um instrumento de controle de decodificação. Orienta a leitura, defende o texto contra mal-entendidos e interpretações equivocadas.”[154] Zumstein situa assim o prólogo em um “nível metalinguístico”[155], que visa estabelecer “o quadro hermenêutico dentro do qual essa história deve ser lida.”[156] Assim como enfatizamos o aspecto da variação na introdução, podemos destacar aqui a tendência da língua a tornar-se singular, não apenas nos dialetos regionais, mas também na fala, especificamente no uso único que o autor do Evangelho de João faz da linguagem.

            A hermenêutica nunca lida com uma linguagem desencarnada, descolada do contexto da enunciação. A linguagem não é uma linguagem de pura intelectualidade justamente porque a intelligentsia deve proporcionar essa obra de reencarnação, devolvendo o corpo ao contexto da enunciação e, ao mesmo tempo, propondo um sentido renovado para o tempo e contexto de recepção pretendidos. As línguas minorizadas, por carregarem consigo o particularismo, conservam traços desses dois princípios em ação, elementos de intercâmbio e o espírito da comunidade local. Fornecem uma riqueza adicional de informações: como um livro didático de história do pensamento, ajudam a nos lembrar que as afirmações estão ligadas às escolas, a uma época específica, enfim, aos seus contextos de enunciação e recepção. Podem até ter uma vantagem, no sentido de que, pelo viés que os coloca no lado particularista do espectro, se expõem como pertencentes a essa encarnação, enquanto o uso da noção de linguagem, descolada de especificidades, obscurece esses elementos contextuais, quando a koine não é simplesmente uma imposição de um localismo que se apresenta como uma língua comum[157].

Além disso, o prólogo de Jo estabelece a noção de Logos em relação a Deus. Encontramos a dimensão relacional já descrita, e a enfatizamos aqui para dissociar completamente a noção de Logos daquela de linguagem entendida como um grau de abstração das linguagens. A relação não se situa mais, como nos relatos da criação, entre o Criador e Suas criaturas, mas entre o Pai e o Filho[158]. De fato, há um certo grau de abstração, já que o prólogo nos convida a refletir sobre a relação entre as duas pessoas divinas. No entanto, ao mesmo tempo, a encarnação nos impede de situar essa relação como uma relação entre duas abstrações, a divina e a linguagem, o Um (o Pai) e o um (linguagem). A relação não pode ser entendida como a relação entre o Um e o múltiplo. O dogma trinitário é verdadeiramente o do Deus trino, três vezes uno. No máximo, podemos entender que a encarnação permeia a noção de Logos de modo a nos impedir de vê-la como uma língua proto-original ou uma linguagem que pode ser completamente abstraída de suas condições de enunciação, de toda contingência. Enquanto a pessoa divina não estiver sujeita à contingência, na medida em que deseja manifestar-se em contingência, não é apropriado reintroduzir, através da absolutização de certas linguagens, qualquer pretensão de se aproximar do Logos.

A dimensão linguística não está tanto implícita na noção de Logos, mas na relação apresentada em Jo 1,1: “Se alguma coisa sobre Deus é perceptível, é a Sua dimensão do Verbo. Isso tem três consequências. Em primeiro lugar, o Deus do prólogo é um Deus que se comunica. Em segundo lugar, Ele se comunica em linguagem articulada. Desde o início, Deus é percebido como o Logos, isto é, como discurso, como direção, como dom de sentido (e não como força, poder, mistério etc.).”[159] É esse dom de sentido que gostaríamos de destacar aqui em relação ao pluralismo linguístico, especialmente como articulado por Zumstein, onde o dom do sentido se distingue da força ou do poder, por um lado, e do mistério, por outro.

 

         b. Dom do sentido e a linguagem

 

O dom do sentido, intrinsecamente ligado à dimensão relacional do Discurso, alinha-se muito bem com uma definição de linguagem como uma linguagem em que cada pessoa faz um esforço em direção à linguagem do outro, sem renunciar completamente à sua. O dom do sentido, portanto, depende de uma das partes—a começar por Deus—se comunicar. A linguagem articulada não deve ser entendida como uma linguagem superior ou mais refinada que as demais, mas como aquela que conserva uma marca de quem se comunica. De fato, o ato de traduzir envolve não apenas transcrever para a língua-alvo, mas também preservar elementos da língua de origem. As línguas minorizadas, especialmente aquelas que ainda experimentam variações dialetais, enfrentam o desafio de se fazerem ouvir e chegar a um ponto de intersecção entre falantes de uma mesma língua, embora às vezes significativamente maior. Examinar as línguas a partir de uma perspectiva sociolinguística não implica lamentar sua suposta falta de abstração ou ambiguidade. Trata-se, antes, de entrelaçar o debate sobre o que constitui a objetividade a partir da objetividade afirmada ou da subjetividade assumida e expressa. Na teologia protestante, a noção de um esforço, mesmo que assimétrico, entre o Deus comunicante e a humanidade não se alinha bem com o conceito de ponto de encontro. O verdadeiro meio-termo encontra-se no Logos, Jesus Cristo, no qual Deus não só se dá a conhecer, mas também leva a humanidade a um ponto central.

Nesse contexto, o dom do sentido, a ambiguidade da linguagem gira principalmente em torno da natureza da linguagem e, consequentemente, das línguas como meio. Enquanto Deus se comunica através da Palavra falada, certas teorias da linguagem enfatizaram a inadequação fundamental da linguagem para capturar plenamente a essência de Deus. Essa perspectiva é particularmente exemplificada por Agostinho, que enfatizou a ambiguidade inerente à linguagem a ponto de criticá-la como um meio eficaz de ensino[160]. Mais recentemente, Eberhard Jüngel abordou a questão não tanto quanto a inadequação da linguagem, mas a colocou no contexto da dialética da presença e ausência de Deus. A questão fundamental na teologia diz respeito à relação entre Deus e a linguagem humana, isto é, a maneira como Deus se relaciona com a linguagem humana, e vice-versa, “a relação da linguagem humana com um Deus que, se fala, deve ser concebido como alguém que fala a partir de si mesmo.”[161] A Palavra de Deus é simultaneamente algo além da linguagem humana e, no entanto, escolhe expressar-se através da linguagem humana. Jüngel reformula assim essa dialética, que engloba tanto o velamento quanto o desvelamento: “Até que ponto podemos dizer que a linguagem humana permite que Deus acesse a linguagem?”[162] A questão, em continuidade à nossa pesquisa, poderia ser reintroduzir aqui a noção de pluralismo e, em todo caso, apoiada no testemunho bíblico, refutar qualquer velamento atribuído ao pluralismo linguístico. A ordenação das línguas em relação a Deus e, consequentemente, seu status teológico, requer um exame aprofundado da relação entre o Logos e o Filho, ou seja, uma exploração da economia do Verbo e da Encarnação[163]. Essa tentativa de distinguir o Logos do Filho é encontrada especialmente no âmbito da teologia das religiões, para dar conta do pluralismo religioso. Embora o Logos, como Cristo, tenha se manifestado única e centralmente em Jesus de Nazaré, não é proibido que ele se manifeste novamente e em outros lugares. A comunicabilidade de Deus seria capaz de assumir outras formas, sem renunciar ao evento único de Jesus Cristo. Embora Jesus Cristo seja a Palavra de Deus, no entanto, uma Palavra de Deus pode ser ouvida em outras religiões. Desta forma, a teologia das religiões pode encontrar uma maneira de resolver um pluralismo que carece de justificação direta nas Escrituras. Em comparação, o pluralismo linguístico seria satisfeito pelo alinhamento perfeito entre o Logos e o Filho, o Verbo encarnado num homem particular, e o pluralismo linguístico não só permite que a Palavra de Deus seja ouvida, mas também é preparada por ela, se quisermos ver na eleição dos Doze uma prefiguração de Pentecostes. Nessa lógica, concluiríamos que as línguas têm um estatuto teológico intimamente associado à Palavra, materialmente, factualmente, participando do desvelamento (o dom do sentido) em vez do velamento, enquanto veríamos a reflexão filosófica sobre a linguagem como tendendo mais para o metafísico, uma abordagem mais especulativa do que ligada à revelação.

 

c. O Espírito

           

Depois de enfatizar que as línguas, incluindo e talvez ainda mais especificamente as línguas minorizadas, podem estar conectadas tanto com o Pai, que é o Criador e se comunica, quanto com o Filho, que é o Logos e o dom do sentido, voltamo-nos agora para a terceira pessoa da Trindade, que é geralmente considerada a pessoa mais apropriada quando se considera as línguas em sua dimensão pluralista. Os teólogos se baseiam no testemunho bíblico, que nos remete ao conceito do dom de línguas. Enquanto o Logos nos leva a refletir sobre a relação entre o Pai e o Filho, o Espírito é entendido principalmente como “a dimensão animadora”[164] que opera no âmbito da pessoa humana e de suas relações interpessoais. Amos Yong enfatiza esse aspecto, descrevendo o Espírito como o coordenador das dimensões pessoal e interpessoal. Embora tenhamos ressaltado a profunda conexão entre as línguas e as duas primeiras pessoas da Trindade, é especialmente notável como a noção de “línguas” ressoa quando se fala de dimensões pessoais e interpessoais. Para explorar as relações entre línguas e Espírito, adotamos os três paradigmas propostos por Amos Yong para analisar a terceira pessoa da Trindade apresentada como pessoalista, naturalista e pluralista.[165] Abordamos o pessoalista por meio da noção paulina de carisma; o naturalista por meio do conceito de órgão formador do pensamento; e, por fim, o pluralista por meio da noção de efusão.

 

         1. O Espírito personalista: os carismas

 

Se o Espírito se revela como uma força animadora, direcionando a autoconsciência para as relações interpessoais[166] que podem ser traduzidas como a orientação do Espírito para os outros e a compreensão de si mesmo através do conhecimento de Deus, Paulo chegou ao ponto de descrever precisamente o modo de ação de Deus através dos seres humanos. O apóstolo usou o conceito de carisma para esse fim. A articulação entre o um e o múltiplo realiza-se aqui sob a forma de diversidade e semelhança: “Há diversidade de dons de graça [διαιρέσεις χαρισμάτων], mas o mesmo Espírito [τὸ δὲ αὐτὸ Πνεῦμα]. Existem diferentes formas de serviço [διαιρέσεις διακονιῶν], mas o mesmo Senhor [ὁ αὐτὸς Κύριος]. Há modos diferentes de fazer, mas em cada um é o próprio Deus que opera» (1 Co 12, 4-6).

O uso do conceito de carisma é, portanto, uma oportunidade de articular a diversidade (διαίρεσις) de implementação e o mesmo, o mestre de obras. O verbo ἐνεργέω (estar trabalhando) evoca o propósito último da ação divina, o οἰκοδομή (edificação). O dom de línguas, a diversidade de dons, não é um fim em si mesmo, mas um meio. O múltiplo não é o modo de expressão do um, mas um modo possível de expressão entre outros. No entanto, no que diz respeito à ação divina, há uma adequação entre substância e forma, e tanto o recurso à diversidade quanto a celebração do carisma e do ministério devem ser enfatizados. A noção de διαίρεσις engloba tanto os significados de divisão, distribuição e diferença[167]. O termo resume assim: 1° a divisão no sentido que vimos em Gn 10–11 como a organização da criação; 2° a ação distributiva; , 3° a valorização da diferença. A dimensão distributiva, que melhor resume o conceito, aparece então como um modo de ação do Espírito e uma expressão da justiça distributiva, senão sua celebração. Essa tríade, que caracteriza a noção paulina, também se harmoniza com uma concepção de gramática universal (GU). O mesmo não se expressa apenas através da variação, mas também revela, na variação, um reflexo da justiça que somos chamados a construir. A linguagem, através e dentro de sua diversidade, é uma prefiguração do mundo a ser construído.

 

         2. O espírito naturalista: o órgão formador do pensamento

 

Amos Yong descreve, através do segundo paradigma proposto, o Espírito como uma abordagem naturalista pode concebê-lo. O teólogo descreve a abordagem naturalista como monista[168] e a vincula à revolução cartesiana. Essa lógica aparece como reducionista no sentido de que a diversidade celebrada através do Espírito personalista torna-se, pela abordagem naturalista, a manifestação de fenômenos, e mesmo de meros epifenômenos. Algo se perde, e é pertinente questionar o custo de tal redução, como diz Yong: “O preço de tal naturalismo se justifica se, no final, os numerosos Espíritos são, na melhor das hipóteses, meros epifenômenos, redutíveis às maquinações do mundo material?”[169] A relação entre o Espírito naturalista e as linguagens evoca a noção de linguagem em um sentido humboldtiano, onde sua função é ser o “órgão formador do pensamento.”[170] Essa abordagem racionalista é ambígua. De uma perspectiva teológica, ele se aventura na especulação tentando especificar com precisão, quase mecanicamente, a conexão entre, de um lado, as produções da mente humana e do Espírito Santo e, de outro, a possível interação entre os dois. No entanto, do ponto de vista das línguas minorizadas, a proposição humboldtiana tende a apoiar a validade da diversidade. O corolário da definição humboldtiana é, de fato, que “a essência da linguagem consiste em colar a matéria do mundo fenomênico na forma de pensamentos.”[171] A tentativa reducionista é desarmada: o que antes era um epifenômeno redutível a uma regra científica superior torna-se um fenômeno, um objeto da ciência e digno da ciência. Essa ideia de que a linguagem medeia e organiza a percepção poderia ser estendida, em um segundo momento, à narrativa e, mais amplamente, à semiótica. A própria diversidade linguística é responsável por um sistema de significado mais amplo do que as mensagens que transmitem. Encontramos um eco dessa expansão da sociolinguística para a semiótica na teologia. As teologias da libertação e, mais recentemente, as teologias contextuais enfatizaram a necessidade de narrativas enraizadas em diferentes realidades e tradições. As teologias da libertação e, mais recentemente, as teologias contextuais, destacaram a necessidade de narrativas enraizadas em realidades e tradições diferentes: “A teologia da libertação trouxe à tona temas negligenciados na tradição cristã dominante. Foi importante recuperar ‘histórias alternativas’, sejam elas negligenciadas ou enterradas.”[172]A abordagem naturalista do Espírito, em sua expressão mais compatível com a teologia, tende a confirmar um status teológico das linguagens como um fenômeno no qual o Espírito se manifesta, mas também como um fenômeno que nos permite contemplar o Espírito, ou mesmo como um fenômeno em que o Espírito se manifesta no espírito humano. Qualquer empobrecimento da diversidade torna-se uma oportunidade perdida de se alegrar com uma manifestação do Espírito.

 

         3. O Espírito Pluralista: o derramamento

 

Amos Yong relaciona o paradigma pluralista ao tema do desencanto do mundo[173]. Uma pneumatologia pluralista seria, por simetria, um do reencantamento do mundo. Vimos que a dimensão personalista do Espírito pode não ser a de uma cosmologia personalista, mas a da articulação entre dignidade pessoal, relações interpessoais e prefiguração da justiça distributiva. Vimos também que a dimensão naturalista do Espírito, com todas as suas limitações, pode reverter o viés reducionista. Por sua vez, a dimensão pluralista deve ser a expressão do Espírito em sua plenitude, em sua abundância. Nesse sentido, a dimensão reducionista desenha as consequências da reversão reducionista. Falamos de efusão, termo que liga Babel (confusio/σύγχυσις) e o derramamento de Pentecostes. Em consonância com o significado primário de efusão, o ato de derramar um líquido, o paradigma pluralista é de maior fluidez: “O pluralismo contemporâneo acentua como vários quadros culturais e linguísticos funcionam para permitir que seus seguidores imaginem, se envolvam e interajam com um mundo cheio do Espírito.”[174] Esse modelo não é apenas cósmico, mas encontra expressão em nível local, dentro da cidade. Tem uma tradução concreta e pretende ser um modelo de convivência. Esta dimensão, que é também a do pluralismo do Espírito, reintroduz um grau de naturalismo em que as línguas podem encontrar o seu lugar. Nesse contexto, transcendência e imanência se misturam em uma lógica panteísta. As linguagens, na intersecção do espiritual e do contingente, incorporam, no nível mais profundo da experiência humana, a dimensão espiritual da realidade. Tentar reduzir a diversidade e o jogo das variações linguísticas aqui equivale a rejeitar uma experiência fundamental dessa confusão/efusão que é replicada dentro do indivíduo no tecido ou processo cosmológico.

Como podemos ver, considerar as linguagens sob a perspectiva de sua materialidade, sua expressão ao longo do tempo e sua constante tendência a variar não é uma digressão fora do âmbito da abstração, mas, ao contrário, uma incursão no mundo da divisão criativa, da justiça distributiva e da aceitação da diferença. Nessa lógica, as linguagens estão, no cerne da experiência humana, ordenadas em direção a Deus, pois podem permitir que as criaturas experimentem tanto o mundo a ser construído quanto percebam como esse mundo futuro não é uma construção fixa e definitiva, mas já está inscrito no tecido cósmico. As línguas, especialmente as minorizadas, expressam, portanto, algo desse mundo ao tornar audível a possibilidade de uma comunicação que mantenha a diversidade, não pressupondo a redução ou o apagamento das diferenças. Essa possibilidade convida cada indivíduo não apenas a trocar uma mensagem desencarnada, mas também a se comunicar e a acolher aquele que se comunica.

III. Universalismo ou comunhão?

           

A valorização da diversidade linguística não se limita apenas a uma tradução eclesiológica. Por sua vez, a Igreja deve promover e valorizar a realidade, a diversidade das línguas na sua singularidade, que constitui a experiência fundamental onde a Igreja conseguiu compreender-se como realidade. De fato, durante nossa exegese teológica de At 2, vimos que a realidade de Pentecostes é vivida e vivida através do pluralismo e da variação linguística. Amos Yong fala de compreensão intercultural e koinonia possibilitada pelo mesmo Espírito[175]. A noção de κοινωνία (‘comunhão’, ‘participação’) deve ser uma oportunidade para dissipar uma ambiguidade, a do que devemos esperar ou entender por ἡ κοινὴ διάλεκτος, que pode ser uma fonte de ambiguidade teológica e linguística adicional. A koinè é a língua comum? O que significa para a Igreja ter uma linguagem comum?

 

         a. Uma linguagem comum ou uma conversa comum?

 

            O grego koinè pós-clássico é assim chamado por causa da frase helenística ἡ κοινὴ διάλεκτος, que significa o dialeto comum. Lembrar isso é destacar a dimensão dialógica[176] não apenas como objetivo da linguagem comum, mas também como condição de seu desenvolvimento e persistência. Trata-se de descartar desde já a ideia de que a língua comum pode ser originariamente a língua de uma das partes. Trata-se, finalmente, de redescobrir a dimensão distributiva, presente em κοινωνία, e que encontramos nas noções bíblicas de διαίρεσις (divisão, distribuição, diferença), διάφορα (Rm 12,6) e διασπορά (Gn 11). O prefixo dia- confronta o prefixo syn- (σύγχυσις, Gn 11) e a noção de fusão, seja explicitamente como em Gn 11, ou através da metáfora da efusão em At 2. Mas se a ação de derramar um líquido é evocada pela raiz χέω, é sempre para descartar completamente (os prefixos syn- ou cum- aqui têm um valor intensivo) fusão ou o similar à fusão. Aqui encontramos a distinção feita por certas línguas entre misturar e mexer, entre fundir e compartilhar.

A distinção entre fusão e partilha encontra uma ilustração na Igreja: por que razão a Igreja, fundamentalmente multilingue e marcada pela diversidade desde a sua origem, está presa a uma concepção estreita de unidade? Certamente, a Igreja permanece fundamentalmente multilíngue e o trabalho de tradução da Bíblia serve para a preservação das línguas. Mas a Igreja não está cedendo à noção de uma linguagem de comunicação e de uma linguagem comum que pode ser a imposição de uma das partes? A confusão entre linguagem e linguagem é reencontrada, enquanto o didático Pierre Escudé nos lembra que “as línguas servem antes de tudo para conceituar (mais do que pensar) e para fazer (em vez de comunicar).”[177]

As línguas, sob a orientação do Espírito e a seu serviço, servem para interagir com a realidade, para envolver o real. Esse engajamento espiritual com a realidade, envolvendo conceituação e ação, cruza-se tanto com o que a teologia entende sobre o chamado do Espírito à ação quanto com o que Amos Yong chama de “imaginação pneumatológica.”[178] As línguas servem ao propósito de conceituação, não apesar de sua variedade, mas através e através de sua própria pluralidade. Esta realidade, que é também a realidade da Igreja, deve ser usada para manifestar a obra do Espírito e a edificação a que somos chamados. O trabalho de conceituar a Igreja já está acontecendo, e sempre aconteceu, nesse encontro, nesse diálogo, na interlinguagem[179]. No entanto, a Igreja não pode legitimar: 1° adotar a tarefa de compartimentação da linguagem em favor das construções nacionais; 2° abraçar a noção de uma hierarquia de línguas baseada na suposta universalidade de uma língua ou em sua maior aptidão para a abstração; 3° ou fechar os olhos para a erradicação das línguas pela língua dominante, que muitas vezes se torna as respectivas línguas das Igrejas nacionais.

 

         B. Universalismo

 

Usaremos o termo “universalismo” para nos referirmos a uma doutrina ou ideologia que considera o universal como um ideal a ser alcançado. Contrapomos a ele a noção de “universal” como um estado de fato, como uma realidade existente. O universalismo traz o risco de impor valores próprios a outras culturas, apresentando-os como valores que devem ser adotados universal e uniformemente. No plano ideológico, percebemos isso como algo semelhante ao que Pierre Escudé descreve como apresentando espírito de campanário como uma força do intercurso[180], ao mesmo tempo em que promove a língua de uma determinada comunidade como a língua comum por excelência. Exploraremos as concepções que poderiam levar a Igreja ao universalismo e aprofundaremos as implicações problemáticas que isso acarreta.

 

         1. Concepção unitarista

 

Deus é uno. A Igreja é una? A unidade é o modo de ser do Uno? O múltiplo é a maneira pela qual Deus se encontra com o ser humano[181]. Ao considerarmos o alinhamento entre Deus e a Igreja, podemos ser tentados a ver na multiplicidade os meios pelos quais a Igreja também é chamada a encontrar os seres humanos? Ao tocar indiretamente no objetivo universalista da Igreja, a questão do universalismo tem sido levantada especialmente em relação à teologia de Paulo, principalmente pela filosofia e não pela teologia em si[182]. Alain Badiou convida a ver Paulo como o fundador do universalismo[183], no que diz respeito à relação entre o uno, o universal e o particular, onde o uno e o universal se opõem ao particular. Michel Quesnel considera que Badiou representa uma das duas leituras filosóficas de Paulo[184]. Assim como Giorgio Agamben, Alain Badiou encarna “o paradigma de um cristianismo universalista”[185]. O exegeta encontra fecunda a combinação antitética de unicidade-universalidade e particularidade “como modelo interpretativo do pensamento paulino”[186]. Judaísmo e paganismo corresponderiam a uma visão de mundo na qual coexistem povos e condições (gregos, judeus, homens, mulheres, livres, escravos etc.): aqui, o múltiplo é a expressão de um “regime sem Cristo”[187]. Isso se opõe a um regime em Cristo, um mundo onde “o particular perdeu sua legitimidade”[188]. O evento único de Jesus Cristo é unificador. Michel Quesnel retoma a noção do singular seguindo Alain Badiou[189]: “Ao contrário do particular, o singular estabelece o universal”.[190]

A preocupação dessa linha filosófica é combater todo relativismo. Procura preservar a singularidade da verdade. Essa preocupação é acompanhada em Alain Badiou por um alerta sobre as implicações políticas do relativismo, bem como sua origen ideológica[191]. No entanto, assimilar a reconciliação como fundamento do universalismo corre o risco de ser uma redução insatisfatória do ponto de vista teológico. O atraente modelo interpretativo do pensamento paulino é ineficaz, ou pelo menos decepcionante, quando se considera o querigma. A Encarnação pode ser equiparada à celebração de um universalismo homogeneizador, um universal que já não traz qualquer traço da contribuição do particular? A retórica paulina, amante do paradoxo, nos levaria a ver na Encarnação um convite à desencarnação, à abstração em nome da unidade da verdade? Isso ignora o fato de que quando Pilatos, em um sentido propriamente grego ou romano, perguntou: “O que é a verdade?” (Jo 18,38), Jesus não respondeu.

 

         2. Idealismo, platonismo, absolutização

 

O Jesus que não respondeu a Pilatos proclamou: “Eu sou a verdade”. Essa verdade, que o filósofo procura proteger do relativismo, foi abandonada por seus discípulos, humilhados e crucificados. No entanto, a cruz pode ser vista como a transição do particular para o universal, com a crucificação do judeu galileano diglosso e a ressurreição como o advento do universal? Tal interpretação é completamente implausível dentro da teologia cristã. Também é insatisfatório do ponto de vista filosófico.

Celebrar a multiplicidade não implica afirmar privilégios ou buscar hegemonia para o particular. A inclusão da singularidade nesse contexto parece mais uma manobra ardilosa. A singularidade, no âmbito do único, e a particularidade, no âmbito do múltiplo, são aparentemente diferenciadas apenas pela reivindicação da particularidade de alguma forma de superioridade sobre outras especificidades. As línguas minorizadas, as múltiplas expressões no Pentecostes, não defendem nenhuma forma de dominação, mas rejeitam a homogeneização, a aniquilação e a negação de seu reconhecimento como indivíduos, como entidades únicas.

Poder-se-ia argumentar que o universalismo cristão reconhece precisamente o indivíduo e combate o comunitarismo estreito, o que é certamente louvável. No entanto, não deveríamos considerar que a libertação do comunitarismo identitário deveria abranger todas essas identidades, incluindo a maioria? As narrativas nacionais, os modelos patriarcais e as linguagens impostas são catalisadores do comunitarismo identitário, a menos que igualemos o universal à maioria e o particular à minoria.

Na realidade, a Igreja foi estabelecida no Pentecostes através do ruah, precisamente por abraçar a inclusão de todas as línguas. Ainda hoje, a Igreja se esforça para se comunicar em todas as línguas. É nesse sentido, entre outros, que ela atinge sua catolicidade, não fingindo encarnar uma realidade de maioria, algo que a teologia natural às vezes procura justificar.

Apesar da influência significativa do pensamento grego nos ensinamentos da Igreja e do impacto do platonismo na teologia cristã, há uma clara ruptura com a filosofia no que diz respeito à noção de verdade. Enquanto a filosofia tende a assumir uma postura apologética em defesa da verdade como um absoluto, a teologia proclama um Deus crucificado, aquele que voluntariamente se limita e rejeita a adoração idólatra. Esse convite à dessacralização encontra o humano em sua condição de pessoa, onde as realidades sociais e históricas encontram seu devido lugar, livres das amarras do cativeiro. No entanto, é importante ressaltar que esse convite não é um convite para se juntar a uma realidade majoritária, cujo mérito, na melhor das hipóteses, seria o de subsumir as particularidades.

 

         3. Dualismo

 

O segundo grupo de filósofos identificado por Michel Quesnel “reflete a partir da concepção paulina do corpo”[192]. Vale mencionar, para contestá-la, o dualismo implícito inerente à distinção entre o universal e o particular. O corpo é, de fato, o reino natural do particular. O corpo existe necessariamente no tempo e no espaço. Mesmo após a morte, ela permanece limitada pelo tempo e espaço. Portanto, o universal corresponderia à alma. As línguas hegemônicas seriam aquelas que mais se aproximam de um princípio desencarnado. Por outro lado, o particular pertenceria ao corpo e as línguas minorizadas se alinhariam a ele. Essa aplicação da dicotomia corpo-alma às línguas é bastante comum. Uma linguagem capaz de expressar tanto o concreto quanto o abstrato pode ser celebrada, inclusive tornando o abstrato concreto e apresentando o concreto impregnado do poder da abstração. No entanto, em resposta a isso, é importante enfatizar que o dualismo é uma contribuição principalmente dos Padres da Igreja e, portanto, mais grega do que bíblica por natureza.

Quando Paulo fala do “corpo pneumático” (1 Co 15,44), além do fato de que a frase σῶμα πνευματικόν se refere a um estado do corpo após a morte, a oposição entre alma e corpo expressa em 1 Co 15,35-58 é mais uma vez inconciliável com qualquer forma de dualismo, uma vez que liga intimamente corpo e espírito,  e através de sua natureza escatológica, lança retrospectivamente a luz do ideal celeste sobre o corpo terreno. A alma, por outro lado, limita-se à sua definição mais material e perecível. Dieter Zeller, traçando paralelos entre 1 Co 15 e Rm 2, coloca nestes termos: “O que ambas as passagens compartilham é a concepção da ‘alma’: ela é o princípio de uma vida restrita apenas ao terreno terrestre.”[193] Aqui, a alma é entendida como o princípio que permeia o corpo durante a vida, enquanto o Espírito é o que permeia o próprio corpo após a morte: “Isso serve para deixar claro que o corpo pneumático não consiste em ‘espírito’ —assim como o corpo da alma não consiste apenas na alma—mas é completamente realizado e permeado pelo Espírito de Deus. Isso, evidentemente, tem consequências para a natureza (ποιότης) do corpo.”[194] A ênfase escritural no corpo, seja porque a Escritura o considere como a totalidade da vida, seja porque ela contempla uma ressurreição desse corpo, representa outra âncora forte no particular ou no singular. Ao rejeitar a racionalização ou abstração final do corpo, a Escritura evita uma confluência muito apressada entre a natureza universal do cristianismo, sua catolicidade e o universalismo filosófico. O papel contínuo do corpo após a morte é outro chamado a respeitar seu lugar na economia da salvação. Como nos lembra Pierre Bühler: “A salvação se realiza por meio de realidades sensoriais: a Palavra é pronunciada; os sacramentos são consumidos; os gestos de fé, amor e esperança são realizados em comunidades de pessoas bem visíveis.”[195] A linguagem herdada é, sem dúvida, uma dessas realidades sensoriais. E a sociedade moldada por uma língua não é a menos importante das comunidades visíveis.

 

         4. Questionando o excepcionalismo ocidental

 

A teologia das religiões pode defender a singularidade ocidental? Segundo o próprio Claude Geffré, “a Igreja [...] tem uma consciência muito mais aguda da particularidade histórica da cultura ocidental, a mesma que foi a cultura dominante subjacente à teologia cristã por vinte séculos.”[196] Tal afirmação parece ignorar a diversidade cultural dentro da Europa, reduzindo-a a um diálogo singular e benéfico que não se alinha com a diversidade cultural real: “Assim como o Evangelho, em sua vocação para o universal, superou a dualidade entre judeus e gregos, ele deve agora transcender a dualidade entre ocidentais e não-ocidentais.”[197] Vamos nos concentrar na segunda parte dessa afirmação, destacando, no entanto, que a Europa não representa todo o Ocidente, e também é importante evitar aplicar uma identidade ocidental a toda a Europa. Nem todos os europeus e as culturas europeias, especialmente quando consideramos as culturas indígenas e minorizadas, podem ser equiparados à história do pensamento ocidental. O fato de essas culturas terem sofrido a imposição do pensamento ocidental deve nos impedir de confundi-las com ele. O tertius quis, “isto é, o outro não ocidental que não é judeu nem grego”[198], pode muito bem ser basco, frísio ou salentino. O desconhecimento de sua própria diversidade linguística e cultural, apesar de ser valorizada pelos próprios teólogos das religiões, corre o risco de tratar outras culturas como blocos homogêneos e monolíngues. De fato, é apropriado questionar o que Claude Geffré chama de “o feliz casamento entre o cristianismo e o helenismo.”[199]

A relutância é evidente, inclusive por parte do pluralismo religioso, quando se trata de questionar o elemento hegemônico, ou seja, a dimensão ocidental da teologia: “Não devemos, sob o pretexto da inculturação, promover uma forma de regionalismo cultural que torne o cristianismo dependente de toda nova cultura.”[200] É compreensível que surjam tensões. A oração do teólogo chinês Hua Wei—“Que o Espírito de Deus ajude a Igreja global na China a não ser ‘o cristianismo na China’, mas a ser ‘o cristianismo chinês’”[201]— destaca a interligação entre questões linguísticas e culturais. Essa oração pode ser interpretada de duas maneiras completamente contraditórias. A aculturação pode ser vista como um sinal de adesão sincera por uma cultura, no caso, a chinesa. Nesse sentido, ele rejeita não o cristianismo em si, mas a recepção ocidental do cristianismo. No entanto, a aculturação também pode ser uma rejeição do alcance universal e da singularidade da mensagem cristã. É fácil imaginar que Hua Wei convida mais a primeira solução do que a segunda.

Do mesmo modo, podemos entender o apelo para “manter a unidade do espírito humano”[202] contra a polarização do mundo entre, por um lado, os “perigos do regionalismo” e, por outro, os perigos de um “mundo cada vez mais indiferenciado e unidimensional.”[203] No entanto, é mais difícil seguir Claude Geffré naquilo que parece ser uma essencialização de certas figuras culturais. Não podemos aceitar que apenas certas abordagens da teologia global representariam no máximo uma curiosidade regional, quando elas não levariam o espírito humano a nada menos do que sua desintegração e enfraquecimento, enquanto apenas a elaboração ocidental garantiria a integridade do pensamento teológico.

As dinâmicas que permeiam os assuntos teológicos e eclesiais contemporâneos carregam consigo importantes implicações sociolinguísticas. A missiologia destaca-se como o primeiro campo a reconhecer uma mudança na direção da missão. Isso é demonstrado por uma breve síntese de pesquisas recentes sobre os desafios enfrentados pelos missionários, como afirma Amos Yong: “Embora ninguém deva minimizar as contribuições dos missionários cristãos, especialmente na preservação das línguas das culturas indígenas (Sanneh 1989), também não devemos fechar os olhos para as muitas maneiras pelas quais os modos de vida não-ocidentais foram desvalorizados. [...] Os cristãos do mundo majoritário, que já foram objetos de missionização, agora estão empenhados em esforços maciços para reevangelizar o mundo ocidental (por exemplo, Währisch-Oblau 2009). [...] Por outro lado, há também um sentido de que as formulações teológicas contemporâneas do cristianismo continuam sendo dominadas por formas e expressões culturais ocidentais perpetuadas pelo movimento missionário (Rah 2009).”[204]

Uma teologia das experiências locais, enraizada no respeito pela vida e sua vitalidade, ecoa Gn 10–11 e Pentecostes, mostrando a obra do Espírito na diversidade e na variação. Esse anseio por justiça, por um catolicismo (entendido como cristianismo καθολικός) que não seja um universalismo distorcido, nos impele à inovação e ao novo, novidade que às vezes implica a descoberta de riquezas existentes das quais devemos parar de nos livrar. Ela nos chama à esperança, a uma imaginação que opera sob o mandamento do amor à criação.

 

C. Redefinindo a catolicidade: explorando perspectivas teológicas

 

As noções de catolicidade e κοινωνία precisam ser esclarecidas em relação ao que Geffré apresenta como uma vocação natural da Igreja para o universal[205]. Na nossa opinião, há um passo que não pode ser dado tão facilmente entre o que, por um lado, se refere à vocação da Igreja como resposta à vontade universal de Deus e, por outro, diz respeito a um universalismo questionável. A vontade universal de Deus envolve a salvação, não a homogeneização, que foi condenada desde o início pela destruição de Babel. Em relação a 1 Tm 2,4-6 (“Deus quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade. Pois há um só Deus, e um só mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homen, que se deu em resgate por todos”), lembra Geffré que “por um lado, afirmamos a vontade universal de Deus, mas, por outro lado, afirmamos que não há salvação além do conhecimento explícito de Jesus Cristo.”[206] Portanto, a universalidade encontra seu propósito último no reino da salvação. Além disso, essa universalidade está ligada à vontade de Deus. Neste sentido, entre outros, a Igreja invisível é universal, pois recorda aos seres humanos a sua igualdade radical aos olhos de Deus. Com base nisso, estabelecer uma conexão entre a construção de uma Igreja universal e a homogeneização e eliminação das particularidades como expressão da vontade divina carece de uma base sólida.

No contexto do discurso escatológico que vislumbra o estabelecimento de uma comunidade inviolável (lat. infrangibilis)[207], e suas implicações unitárias, é crucial enfatizar que a Igreja “nasceu universal.”[208] A Igreja tem a sua universalidade inerente desde a sua concepção. Os teólogos podem invocar o conceito de universalismo proléptico neste contexto. No entanto, pode ser mais sensato evitar qualquer confusão potencial associada ao universalismo e, em vez disso, concentrar-se na vontade universal de Deus, na igualdade fundamental de todos os seres humanos diante de Deus e na dignidade compartilhada que nos une. É importante ressaltar que as teologias da libertação têm sido amplamente baseadas na “visão paulina do corpo de Cristo, na qual cada indivíduo tem um papel distinto a desempenhar.”[209] Infelizmente, o uso do universalismo como conceito inadvertidamente obscureceu a dimensão católica da mensagem cristã. Teólogos que lidam com as complexidades do pluralismo religioso discerniram a intrincada relação entre a catolicidade da Igreja e a tendência a absolutizar o cristianismo. Nesse sentido, estudiosos como Hans Urs von Balthasar têm contemplado, em fidelidade à própria mensagem cristã, explorar a “noção de ‘não-catolicidade’ dentro da dimensão histórica da Igreja.”[210] É importante notar que Balthasar não renuncia à catolicidade histórica da Igreja, mas, no contexto do diálogo inter-religioso, reconhece os desafios colocados pela noção de catolicidade. Nossa abordagem, que distingue universalismo e catolicidade, procura apresentá-la como uma realidade inerente, e não uma construção ideológica, capaz de reconhecer e acolher as diversas particularidades que contribuem para um sentido de unidade. É a insistência na homogeneização e a exigência de renúncia ao particular, visto como obstáculo à unidade, que distorce a verdadeira essência da unidade como resultado da integração.

 

            Desafiar a exclusividade e rejeitar o absolutismo

 

Se o cristianismo e a exclusividade[211] são corretamente percebidos como antitéticos, é ainda mais inconcebível conceder às línguas, produtos do Estado-nação, um status que a própria Igreja se recusa a aceitar. Os teólogos das religiões expressam esse sentimento afirmando: “Portanto, não devemos atribuir ao cristianismo uma universalidade que pertence apenas a Cristo.”[212] Engajar-nos nos reinos da imaginação, da criatividade e da esperança deve permitir-nos não apenas restaurar a humanidade ao seu devido lugar, não como uma entidade universal abstrata e maleável influenciada pela ideologia, embora ela prometa a salvação da criação, mas também ouvir o Espírito, o princípio da vitalidade, o catalisador da diferença,  novidade e justiça. Segundo Pierre Gisel, renunciar às fantasias totalizantes e homogeneizadoras representa um desafio contemporâneo[213].

Se a injustiça experimentada pelos falantes de línguas tornadas minoritárias não pode ser separada de certas implicações teológicas, como a compreensão da unidade, universalidade ou mesmo um certo dualismo na história, e se questionar esses entendimentos doutrinários é legítimo, podemos, no entanto, observar uma certa desconexão entre ortodoxia e estilo teológico. Como enfatiza Christopher Rowland, “No que diz respeito à doutrina, a teologia da libertação não se desvia muito do caminho teológico predominante.”.[214]

Se seguirmos a linha de pensamento proposta pelo teólogo de Oxford, as teologias da libertação conseguiram articular um discurso que promove a diversidade e respeita as particularidades sem renunciar à noção de universal e sem cair no relativismo. Da mesma forma, a insistência das teologias da libertação na ação do Espírito, independente das instituições eclesiais, não solapou a profunda ligação que muitos teólogos e praticantes desse movimento mantêm com a Igreja Romana. Nesse sentido, afirmamos também uma posição que não vê contradição inerente entre o universal e o particular, ecoando o apelo de Aimé Césaire por um universalismo “enriquecido por tudo o particular, enriquecido por todos os particulares, aprofundamento e coexistência de todos os particulares.”[215] Uma abordagem ortodoxa desse assunto nos leva a evitar estabelecer uma dicotomia entre o universal e o particular, bem como nos orienta a não limitar a obra do Espírito apenas dentro ou fora da igreja. Esta importante perspectiva é sublinhada pelas ideias de Robert Jenson. Embora reconheçamos que a atividade do Espírito se estende além dos limites da igreja e de seus representantes, reconhecemos que o Espírito é “Deus como poder do futuro”[216] e, como tal, está ativamente presente na Igreja.

IV. O próximo: entre o estrangeiro como “desafio teológico”[217] e o “irmão como graça”[218]

 

 

 

 

“O tirano das mentes quer mudar nossas línguas

Forçando-nos a rezar em língua estrangeira:

O espírito que distribui línguas nos chama

A rezar apenas em nossa língua natural.      

É esconder a candeia debaixo do alqueire,

Quem não se explica é bárbaro para os outros,

Mas vemos algo ainda pior na ignorância extrema.

Quem não se compreende é bárbaro consigo mesmo”.

 

— Agrippa d’Aubigné, As Trágicas (1615)[219]

 

 

O modo como Deus encontra o ser humano e como a Encarnação nos permite ver Deus no próximo ressoa especialmente com as línguas minorizadas, pois o encontro com o outro não pode implicar impor-lhes uma linguagem. Tenhamos em mente, como já foi determinado, que é através do Espírito que Deus encontra o homem, especialmente na era pós-Pentecostes.

           

Eu como um estranho

 

O caso da inautenticidade enfrentada por falantes de línguas minorizadas está enraizado em dois pressupostos implícitos, entre outros: 1° a linguagem serve ao propósito da comunicação, aderindo a uma visão puramente utilitarista; e 2° o melhor entendimento é alcançado dentro de um grupo homogêneo. O mesmo é mais capaz de entender o mesmo. O primeiro pressuposto levanta questões sobre o utilitarismo ao mesmo tempo em que exige uma denúncia de suas implicações sócio-darwinianas: as línguas hegemônicas afirmam seu status de mais aptas. Se elas prevalecem sobre as línguas minorizadas, é porque o processo de seleção natural as proclamou como as mais adaptáveis, as mais aptas. No entanto, não podemos ignorar a sobrevivência persistente das línguas minorizadas até hoje, em circunstâncias que demonstram inequivocamente a sua formidável aptidão.

Pareceu-me relevante confrontar esses dois pressupostos implícitos relacionados à linguagem com outra noção, a de vizinho, e especificamente com a noção de vizinho apresentada na parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37). Questionar τίς ἐστίν μου πλησίον; (“Quem é o meu próximo?” Lc 10,29) a resposta é: sua pergunta deveria ter sido “a quem fui próximo?” Você é um vizinho, ou foi um vizinho, para aquele a quem você mostrou ἔλεος (compaixão). O próximo, como concebido aqui, não é o destinatário de  ἔλεος, mas sim aquele que demonstrou ἔλεος (Lc 10,37). Por um lado, essa compreensão dos outros mina a dimensão utilitarista das trocas humanas. Por outro lado, a noção de vizinho interrompe a compreensão binária de si e do outro. Na verdade, a noção subverte esses dois pressupostos implícitos: 1° através do próprio movimento que a noção descreve. De acordo com a parábola do Bom Samaritano, não se trata de considerar o outro como próximo, mas de se aproximar do outro e, assim, tornar-se próximo, tornar-se próximo. Trata-se de um movimento com o qual estão familiarizados falantes de línguas que mantiveram uma forte característica dialetal, ainda que dinâmica, disposição que não lhes é exclusiva. Cada pessoa sabe intuitivamente como adaptar seu nível de linguagem ao seu interlocutor. Adaptar a linguagem de acordo com o entendimento do seu interlocutor pode até ser a essência de uma conversa. 2° A noção também é subversiva no sentido de que, decorrente de um mandamento religioso, interrompe o encontro face a face entre o eu e o outro, introduzindo o totalmente outro. É possível, portanto, colocar a questão não em termos do universal (uma linguagem que seria válida em todos os tempos e em todos os lugares) ou do comum (uma linguagem compartilhada), mas em termos do terceiro. Ele já pode estar feliz por não estar condenado a um encontro presencial circular, mas a possibilidade de o terceiro também introduzir a mediação. A introdução do totalmente outro em conexão com o próximo, pelo menos na teologia cristã, de fato coloca novos problemas. Em primeiro lugar, o totalmente outro pode ser entendido como um terço absoluto, completamente alheio ao parceiro do outro e do mesmo. Se é totalmente outro, é “nem que une nem que divide.”[220] Em segundo lugar, esse “Totalmente outro”, que naturalmente pode ser compreendido como uma das metáforas de Deus, se reflete na figura daquele a quem somos chamados a fazer-nos o próximo[221]. Por fim, a noção de ‘mesmo’ está orientada para o conhecimento de Deus[222], buscando assim negar ao si a sua dimensão de mesmo.

As línguas minorizadas são as línguas faladas por aqueles que não fizeram a transição completa para a respectiva língua hegemônica. Aqueles que abandonaram sua língua, muitas vezes em busca de ascensão social, encontram-se em um espaço liminar entre a cultura que desejam abraçar e a herança que agora consideram estrangeira. É importante notar que esse fenômeno nem sempre é consciente. Nesse sentido, a ideia de que se é também o próprio estranho adquire uma dimensão muito concreta e íntima. O teólogo Pierre Bühler dá a essa questão um significado mais amplo, que pode ser bem compreendido de uma perspectiva sociolinguística: “Sou forçado a reconhecer que sou realmente um estranho a mim mesmo. Portanto, se estou disposto a dirigir-me ao estranho dentro de mim com a devida consideração, também estou preparado para estender essa mesma consideração ao estranho à minha frente.”[223] Essa “tematização da alteridade a partir da perspectiva do si”[224], tal como articulada por Pierre Bühler seguindo Paul Ricoeur, alinha-se particularmente bem com o pluralismo linguístico. Primeiro, porque o pluralismo linguístico aborda a linguagem não como uma abstração, mas na forma como ela se manifesta; e, em segundo lugar, porque, de uma perspectiva fenomenológica, pode-se estabelecer uma conexão entre a singularidade irredutível do self e o fato de que é justamente nessa singularidade irredutível do self que somos como os outros, entre a proliferação irredutível de dialetos locais e o fato de que, nessa possibilidade irredutível de singularizar-se permanecendo no quadro de uma linguagem mais ampla,  Dialetos e línguas não são diferentes de outras línguas naturais. Essa conhecida dialética do outro e do mesmo é iluminada pela teologia da criação mencionada acima. O desafio do estranho nos remete não apenas à dimensão relacional, mas também à busca inútil do autoconhecimento que não é primariamente um conhecimento de Deus, aqui através da figura do estranho.

Já encontramos esse movimento de retorno a si mesmo através do outro antes, e dissemos que o novo, a novidade do Espírito, é o que restaura, mas também o que consegue surpreender do que é ainda mais familiar e íntimo. Podemos pensar, em particular, na fábula de Eizik[225]. A circulação entre o eu, o outro e o mesmo, o um e o múltiplo, reivindica a lógica do retorno: em contraste com “a filosofia grega que postula que só o semelhante pode reconhecer o semelhante, há outra lógica, a bíblica, que afirma que o não semelhante reconhece o outro em sua alteridade.”[226] A radical não-reciprocidade que leva à diglossia é um exemplo extremo de recusa em reconhecer o outro em sua alteridade. O outro hegemônico não só não o reconhece em sua alteridade, como o nega abertamente.

O amor pelos inimigos pode chegar ao ponto de endossar a própria morte? Contra essa ideia, François Jullien afirma que “a tolerância entre valores culturais [...] não deve resultar (não deve simplesmente porque não pode) de cada um, pessoa o civilização, reduzir a pretensão de seus próprios valores ou moderar sua adesão a seu respeito, ou até mesmo ‘relativizar’ suas posições [...], todos esforçando-se e atenuando suas concepções.”[227] Essa recusa é necessária justamente para manter a alteridade e rejeitar a fusão, que é uma mera negação do próximo, negando que o próximo existiu. No entanto, Jullien não defende a criação de novos grupos inclusivos hostis ao grupo hegemônico. Pelo contrário, o filósofo defende a intercompreensão e a colaboração: “Uma tolerância desse tipo não pode advir sinão da inteligência partilhada: de que cada cultura, cada pessoa, torne inteligíveis em sua própria língua os valores da outra e, por conseguinte, reflita-se a partir deles—logo, também, trabalhe com eles.”[228] Ele resume seu argumento da seguinte forma: “A solução, em outras palavras, não está no compromisso, mas na compreensão.”[229] No entanto, essa verdadeira compreensão se afasta quando a língua do outro é considerada como subalterna ou opcional. A compreensão passa necessariamente pela intercompreensão, ou seja, pelo retorno às línguas naturais entendidas como línguas dialectais, línguas-glaciar carregando o depósito dos anos, o sedimento do tempo, e não línguas tornadas abstratas de antemão que pretendem dar conta da realidade a partir de uma posição reducionista de desapego[230].

 

O outro como figura de si-mesmo

 

O argumento de Ricœur sobre a alteridade é notavelmente iluminado por uma carta de Hölderlin que Ricœur cita em sua palestra de abertura na Faculdade de Teologia Protestante de Paris: “O que é próprio deve ser aprendido tanto quanto o que é estrangeiro.”[231] Para Hölderlin, de fato, o espírito só alcança a autoconsciência ao passar pelo outro numa dupla relação de polaridade e igualdade entre o eu e o estrangeiro, reconhecendo o estranho que cada indivíduo carrega consigo porque nunca somos idênticos a nós mesmos[232]. Isso impede que nos adotemos como norma e que não nos reconheçamos nossa própria alteridade radical ou alteridade profunda[233]. Ao redefinir os limites da alteridade, Hölderlin inicia uma inversão da polarização entre o mesmo e o outro e permite sua transcendência. Através da diglossia, a língua minoritária abre-se ao outro à custa da sua aniquilação, enquanto a língua hegemónica ergue o seu monolinguismo, uma particularidade antropológica, como princípio de abertura e universalidade. No entanto, é justamente estar aberto ao próximo, ao outro, reivindicar o único privilégio de uma conversa unidirecional para a própria língua? O que Geffré chama de “articulação entre a universalidade da mensagem cristã e a pluralidade das tradições religiosas e culturais”[234] está profundamente enraizado em uma reciprocidade que condena severamente aqueles que não reconhecem o outro, sua alteridade e, consequentemente, sua linguagem. Pelo contrário, é essencial que os cristãos reconheçam a sua necessidade dos outros. Geffré encapsula essa noção exortando cada comunidade cristã e o cristianismo como um todo a rejeitar qualquer forma de verdade ou imperialismo religioso e, em vez disso, abraçar suas próprias deficiências, servindo “como um sinal do que lhes falta.”[235]

 

B. A função profética

 

De acordo com o mandamento de amar o próximo, como o diálogo com outras religiões, o valor que atribuímos às línguas e culturas também deve refletir esse mesmo mandamento. A noção de um suposto universalismo ou dependência de uma língua comum não pode servir de disfarce. Nesse contexto, Claude Geffré percebe um aspecto profético: “O estrangeiro possui uma função profética para uma compreensão mais profunda de nossa própria identidade.”[236] Essa dimensão profética serve como salvaguarda contra o provincianismo, a possessividade e qualquer outra inclinação associada a perspectivas estreitas. A natureza inerentemente dialética das línguas, especialmente acentuada em línguas marginalizadas, impede a uniformidade e nos obriga a perceber nossa língua falada diariamente de diferentes maneiras ou a redescobrir sua história por meio de manifestações distintas, mas evocativas.

      Isso envolve, em particular, recusar o espírito de proprietário e, ao contrário, receber novos interlocutores[237]. As exigências de igualdade e reciprocidade promovidas pelo diálogo religioso são impostas às línguas minorizadas nesta fase da sua evolução: “Tornar-se um falante legítimo de uma língua ameaçada no âmbito de projetos de revitalização é uma questão fundamental, uma vez que o sucesso desses projetos depende muitas vezes da sua capacidade de gerar novos falantes dessas línguas.”[238] O duplo movimento de Pentecostes, centrípeto e centrífugo, reflete-se não apenas ad extra “comprometendo-nos tanto com o enraizamento quanto com a superação do enraizamento, com o local e com a transcendência do local”[239], mas também ad intra através do respeito à variação linguística ao hiperlocalismo[240] ou ao impacto de uma prática revitalizada por novos falantes marcados por outras línguas ou pela língua hegemônica.

 

 

 

C. Deixar-se desviar

 

Esta seção explora o conceito de desvio como uma experiência transformadora que leva ao reconhecimento de uma forma alternativa de universalidade. Quando as pessoas que falam línguas minorizadas encontram falantes de outras línguas marginalizadas, elas experimentam um processo de desvio. Da mesma forma, pessoas pertencentes a grupos sociais oprimidos muitas vezes encontram semelhanças nos desafios que enfrentam com os de outros indivíduos oprimidos. Esta seção investiga o significado de desvio e seu impacto na formação das noções de vizinho e o potencial de uma teologia do próximo para combater ideologias do “universal dominador”[241].

 

         1. O modelo althusseriano[242]

 

            Os adjetivos ‘minorizado’ e ‘hegemônico’ refinam um modelo de pensamento que se baseia em uma base materialista. Essa base materialista faz uso extensivo de Paulo, ou do conceito de “cristianismo”, para explicar tanto sua própria compreensão do universal quanto sua definição de ideologia. Aqui nos voltamos para a análise de Julia Christ, que visa separar o universalismo da universalidade, “guiada pela intuição de que o que é combatido e defendido como universal não é.”[243]

                       

         Uma revisão da abordagem materialista

 

No capítulo anterior, encontramos a ideia de uma universalidade que refletiria apenas as forças dominantes. A questão da dominação surge do fato de que “representações particulares são impostas como representações compartilhadas coletivamente.”[244] O modelo althusseriano parte dessa análise para apontar para a própria ideologia, que, como “realidade não histórica”[245], explica apenas “a relação coercitiva das instituições com os atores, e não o fato de ser a ideologia do dominante.”[246] Aqui, o cristianismo aparece como exemplo dessa ideologia, que tem “a função de constituir os indivíduos como sujeitos.”[247] Esse mecanismo, que Althusser chama de interpelação, “atribui aos indivíduos um lugar e garante sua identificação com aquele lugar.”[248] Esse modelo leva a uma imitatio Christi-imitatio Dei, entendida como uma aceitação do próprio lugar no mundo ou “um amor pelo que é.”[249] Julia Christ destaca ainda uma abordagem emprestada da economia política, “um modelo em que a identificação de todos os indivíduos com uma qualidade comumente reservada a Deus, isto é, a onipotência, produz uma ordem social onde a universalidade concreta, resultado da síntese espontânea, afirma-se como um conteúdo dominante.”[250] Esses modelos de universalidade baseiam-se em um cristianismo temático, que reflete uma cosmovisão materialista e, simplificando, em completa contradição com a mensagem cristã que rejeita precisamente a identificação com os lugares, encarna-se num homem que aceita ser desviado de seu caminho (Mt 15,21-28) e não esquece a autolimitação da onipotência divina. Nesse contexto, desejamos explorar a noção de vizinho, mas é importante lembrar mais uma vez as expectativas dos modelos materialistas por causa de seus pressupostos subjacentes.

 

         b. O operador “todo”

 

Jean-Claude Milner mostra efetivamente as implicações da tematização do cristianismo como figura do universalismo dentro do argumento materialista. Ele faz isso através do que ele chama de “operador todo (operateur tout).”[251] Milner, um dos principais defensores da teoria do Nome Judaico[252], revisita indiretamente a tematização do cristianismo como figura do universal[253], mantendo a tematização do Nome Judaico como um obstáculo à homogeneização. O filósofo e linguista ilustra, com base em Tácito[254], que “através de seus rituais e costumes, os judeus impedem (ou são percebidos pelo historiador romano como impeditivos) um tratamento coerente de todos os homens. Eles impossibilitam o uso do ‘operador todo’.”[255] As implicações são profundas: aquilo que ameaça a homogeneização de uma cultura apresentada como inerentemente homogênea só pode existir como contraexemplo. “Quando a verdade é definida como Quod semper, quod ubique, quod ab omnibus (‘o que é sempre, o que está em toda parte, o que é para todos’), como um judeu é possível dentro do reino da verdade? A resposta é clara: não é, a não ser como suporte para a falsidade e todas as insuficiências, entre as coisas e o intelecto.”[256] O argumento descreve os mecanismos de um processo de inautenticidade, de suspeita contra línguas minorizadas acusadas, por natureza, de não poderem contribuir para o trabalho comum, para o bem comum e de não poderem contribuir para o “nós” coletivo. Essas línguas encontram seu lugar apenas como repelente, representando o que deve ser evitado.

 

         2. O cristianismo como antimodelo

 

Contra a abordagem materialista, Jean-Claude Milner inverte os termos de tal forma que nos remete à autolimitação do poder de Deus: “Uma teoria só é verdadeira se não for todo-poderosa.”[257]

 

         a. A rejeição do existente

 

O mecanismo de interpelação, tal como descrito por Althusser, pode encontrar correspondência com uma noção de cristianismo como cristianismo, um modelo social enraizado em valores conservadores que busca afirmação através do cristianismo. No entanto, ele enfrenta um desafio profundo quando confrontado com uma teologia cristã que retrata um Deus de iniciativa, um Deus que arranca e põe em movimento. Essa divindade disruptiva transcende não apenas as leis naturais, mas também as normas religiosas e as convenções sociais. Tal teologia abala os alicerces e exige uma reimaginação radical de nossa compreensão, exortando-nos a enfrentar o desconforto de sermos confrontados e transformados por um Deus que desafia nossas expectativas.

 

         b. O potencial de desvio

 

Discutimos o encontro entre Jesus e a mulher cananeia (Mt 15,21-28). A interpretação mais cativante, onde Jesus concorda em reconsiderar seus planos, é rejeitada pela exegese. No entanto, na verdade, ele enfrenta o operador esmagador todo. Como bem assinala Pierre Bonnard, “Jesus deve estar comprometido [...] na história secular de uma nação particular [...] sendo o seu particularismo a garantia da sua universalidade.”[258] É precisamente porque a missão de Jesus se confunde com a história do povo eleito que ela tem um significado universal. Quer Jesus altere seus planos ou não, o encontro com o outro continua sendo uma oportunidade de introspecção. O versículo-chave 27 marca um ponto de virada[259], pois Mateus, através da voz da mulher cananeia, introduz a aceitação da salvação principalmente para Israel, ao mesmo tempo em que considera o impacto potencial desse dom inicial sobre os gentios. Mesmo que Jesus mude ou não seus planos, o encontro com o outro parece, de qualquer forma, ser uma oportunidade para uma reflexão sobre si mesmo.

 

         c. Autolimitação do poder de Deus

 

            Finalmente, o modelo descrito por Althusser baseia-se em uma identificação com um Deus todo-poderoso que pode confiar em uma longa tradição teológica em favor da onipotência de Deus, mas ainda assim ignora seu corolário fundamental, a autolimitação de Deus que permite que a criação exista. A identificação facilitada pela interpelação reflete uma compreensão da fusão na relação com Deus, ignorando a teologia ou a religião como mediação, como o espaço que se mantém entre Deus e Sua criação para permitir um encontro genuíno. A religião não exige, nem deve exigir, uma imitação de Deus ou de seus mediadores, mas sim o reconhecimento dessa mesma impossibilidade. É através destes exemplos que a humanidade reconhece a sua miséria e apela a Deus. No máximo, a imitatio Dei encontra seu lugar na autolimitação que deveria guiar o ser humano a se aproximar dos outros, a tornar-se vizinho, o que significa não ocupar todo o espaço. Essa distância, que protege contra a fusão e permite encontros genuínos, reside em não compreender facilmente o outro. A não homogeneização das línguas garante que o outro permaneça um enigma, escapando a uma compreensão prática que é também uma apropriação. Se o outro não é o Ganz Andere (totalmente outro), também não se reduz ao mesmo. A empatia não pode chegar ao ponto de esquecer de si mesmo, de abandonar a própria língua. Preservar o diferente é também uma luta para evitar a espoliação do outro[260]. A quenose está em retornar a uma compreensão explícita da parábola do Bom Samaritano e em desobjetificar o outro a quem nos acostumamos a chamar de próximo, arriscando a apropriação. O outro não é nem um outro eu mesmo nem uma oportunidade de se mostrar a Deus, em resumo, ele não é nem meu vizinho[261] nem meu próximo.        

C. “O irmão como graça”[262]

 

            Em última análise, ao contemplar a imitatio Dei no contexto desse ato unidirecional de compaixão pelo outro (onde nos tornamos vizinhos e permitimos que o vizinho convencional seja “apenas” o outro), também podemos refletir sobre a análise de Bonhoeffer: “Tu es pecador, um grande pecador incuravel; e agora, como pecador que tu es, chega-te a teu Deus que te ama. Ele te quer tal como es. Não quer nada de ti, nem sacrificio nem obra. Ele quer a ti somente.”[263] Segundo Bonhoeffer, é isso que a graça do Evangelho anuncia, e podemos anunciá-la tanto para o outro quanto para nós mesmos. Para o outro a quem somos convidados a nos aproximar, esse anúncio de graça é válido porque aceitar o outro não está condicionado por qualquer conhecimento de sua pessoa ou qualidades, mas simplesmente porque ele é amado por Deus como ele é. Para nós, o anúncio da graça é válido porque somos todos pecadores e, como tal, podemos formar uma comunidade de pecadores. A unidade e a comunhão não estão ordenadas para a santidade ou a perfeição. Para as línguas, a implicação é que o conhecimento essencial e a comunhão resultante é a universalidade do pecado. Qualquer tentativa de subordinar a comunidade a uma linguagem comum ou referência universal é denunciada como uma restauração pré-Babel. A fraternidade vem em primeiro lugar. Ela não se baseia em nenhuma homogeneidade, exceto na universalidade do pecado e no pertencimento a um único Mestre (Mt 23,8). Também aqui se rejeita o encontro face a face entre o outro e o mesmo porque Cristo não só se revelou no outro (Mt 25,40), mas fundamentalmente porque, depois da Encarnação, o outro tomou o lugar de Cristo. Bonhoeffer assim o expressa: “[O irmão] esta no lugar de Cristo.”[264] Bonhoeffer justifica isso em um sentido restrito de uma comunidade acessível através da confissão, mas nos reservamos o direito de entender sua afirmação em um sentido mais amplo e verdadeiramente universal, precisamente por causa da universalidade do pecado.

 

         Linguagens da vulnerabilidade versus utilitarismo

 

Reconhecer a impossibilidade de atribuir ao outro uma identidade baseada numa continuidade absoluta, numa conformidade a uma suposta identidade, implica reconhecer que “o praticável talvez esteja em reconhecer que todas as tentativas de identificação, que constituem a substância dessas narrativas de valor interpretativo no que diz respeito à retirada do eu, estão fadadas ao fracasso. Apenas a falha de uma sequência indefinida de identificação é impraticável.”[265] Nesse sentido, a dimensão dialética das línguas fora dos processos de padronização/homogeneização desempenha um papel vital e íntimo no acolhimento e promoção da alteridade. Se aceitarmos que o conhecimento de Deus é primário e o autoconhecimento é secundário, e ainda mais evasivo, pois envolve reconhecer-se como miserável/pecador, a dimensão da conformidade só faz sentido em relação à vontade divina, não na preservação ilusória da identidade. Não se trata de conformar-se, mas com o que Deus deseja para a Sua criação (1 Ts 4,3a). Deus nos liberta da tirania do mesmo e, nesse sentido, pode-se dizer que Ele faz “novas todas as coisas” (Ap 21,5). Um corolário da apreensão apofática do si[266] na equação “si-mesmo como um outro” é a apofase do outro e, portanto, a desejável apreensão apofática do outro.

O outro é encontrado apenas como irreduzível. Se ele se aproxime, como no caso de Levinas[267],  ou se nós o façamos nosso próximo, em ambos os casos, o outro se revela como algo irreduzível à nossa própria experiência. Pelo menos, é assim que devem ser revelados. No entanto, o que acontece com mais frequência nos encontros é a filtragem do outro através da nossa própria experiência, através da nossa própria compreensão do mundo. Em vez de ser irredutível, o outro é permeado por nossa conveniente compreensão deles. Assim, escapamos sempre do encontro com o outro.

A questão da mediação ressurge quando consideramos que somente no outro podemos nos permitir ser abordados pelo Outro, ou mesmo nos aproximar do Outro. Aqui, Aqui é preciso renunciar a remontar do dito ao Dizer[268], mas sim de receber o outro como teofania, acolhendo o outro como graça, para si e não como mediador ou meio. No entanto, há uma tensão entre essa possibilidade de encontrar o Ganz Andere no outro e a possibilidade do Ganz Andere estar totalmente presente no outro. Em um nível filosófico, Ricœur identificou essa tensão em Levinas: “Como podemos reconciliar a súplica [...] pela irredutibilidade do ‘Dito dizer’ com o discurso [...] sobre a proximidade?”[269] Podemos imaginar que essa irredutibilidade do Dizer ao dizer, para nós do Outro para o outro, seja concebida como um elo de continuidade entre a honra de Deus e a dignidade do outro? Essa irredutibilidade do outro, esse encontro que nunca é mais do que uma aproximação, essa proximidade fugaz oferecida pelo encontro, muitas vezes é vivida como uma “perturbaçõa”[270]. No encontro com o outro, muito nos lembra o Totalmente Outro. O outro também é permeado por nossa conveniente compreensão de Deus, e também sempre escapa—pelo menos intelectualmente[271]—e também perturba. A diferença está nisso: é Deus que se aproxima e Deus que se dá a conhecer, certamente segundo a lógica do velamento/desvelamento, mas se dá a conhecer numa revelação que não admite ambiguidade.

Certamente, Deus se aproxima, especialmente na figura do outro. E, sem dúvida, somos convidados a nos tornarmos vizinhos uns dos outros. Mas devemos ir tão longe quanto o que Ricœur chama de “obsessão pelo próximo”[272]? Reiteremos que Deus não deseja ser adorado como ídolo. Ricœur enfatiza que “o texto de Levinas é violentamente antiteológico”[273] a esse respeito. A irredutibilidade do outro deve proteger o outro de se tornar objeto de obsessão, fetichizado, reduzido a uma função de inquietação, perturbação ou representação de Deus. A situação de responsabilidade para com o outro, a que o Evangelho nos convida, não implica a abolição da liberdade do outro.

Quais são as implicações de uma teologia do estrangeiro, do outro, ou de uma eclesiologia para falantes derrotados e vulneráveis de línguas minorizadas, a partir das escolhas semânticas de Levinas? Acreditamos que a contribuição da Levinas aqui é possibilitar o empoderamento e um renovado senso de dignidade. As línguas minorizadas procuram expressar algo sobre a sua responsabilidade no mundo. Eles são vividos como testemunho e ilustram facilmente o convite de Levinas: “No traumatismo da perseguição, passar do insulto sofrido à responsabilidade pelo perseguidor.”[274] Claro, aqui estamos despolizando o pensamento de Levinas para manter apenas a parte aconchegante. Apesar de sua compatibilidade com uma leitura da mensagem cristã (dar a outra face; Mt 5,39) e a admiração que essa obsessão pelo próximo desperta, não podemos abraçar plenamente o convite de Levinas a uma passividade tão perfeita. A paciência absoluta exigida por Levinas só nos parece possível nos frutos conclusivos que produz: uma situação de absoluta passividade onde “o perseguido [é] susceptível de responder pelo perseguidor.”[275] Embora essa conclusão evoque uma resolução desejável, a noção de passividade, especialmente quando qualificada como absoluta, parece contradizer o próprio raciocínio. O sofrimento, especialmente da maneira descrita por Levinas, não nos parece uma questão de passividade.

           

Assim como nos exemplos destacados por Levinas, na tragédia que se desenrola em torno das línguas minorizadas, há uma parte que não pode ser resgatada: a igualdade não pode ser restabelecida[276]. A injustiça sofrida pelos falantes dessas línguas permanece irreparável, tornando irrelevante a noção de perdão. Em vez disso, o foco se desloca para a busca de justiça e a restauração da dignidade de suas línguas. Esse aspecto teológico mantém sua presença, embora de maneiras aparentemente antiteológicas, alinhando-se com nossa compreensão da teologia fundamental: sem justiça para com os marginalizados (Mt 25,31-46), Deus não pode ser verdadeiramente acessado. A ocultação profunda de Deus por trás da figura do outro serve como uma afirmação contundente da intenção de Deus de se manifestar como universalidade concreta. Essa manifestação, longe de contradizer Jo 14,9b (“Aquele que me viu viu o Pai”), sublinha poderosamente a necessidade imperativa das limitações autoimpostas por Deus, até, ouso dizer, da própria perspectiva de Deus. Em última análise, a ética da responsabilidade encontra sua materialização em um compromisso absoluto com a compaixão, que é sinônimo de justiça, abrangendo não apenas um pré-requisito, mas a própria essência da compreensão de Deus.


 

V. Criação e esperança

 

 

 

 

 

 

 

“Senhor, destacatz ma lenga!”[277]

 

Mistral, Miserere [1845]

 

 

 

 

Até agora ignoramos a advertência de 1 Co 13,8, que era o título original francês deste estudo: “As línguas cessarão”[278]. A justificativa bíblica apresentada por essa pesquisa pode resistir a uma previsão sombria e muitas vezes confirmada? Seguindo a longa tradição da teologia, que tem celebrado continuamente a diversidade da criação, voltamos nossa atenção para a representação da diversidade linguística como uma bênção profunda, um reflexo da vontade de Deus e acesa pelo Espírito. No entanto, fica a pergunta: como conciliar a noção de diversidade com o horizonte escatológico? O recurso às línguas, mesmo através da sua própria dispersão, tem algum significado à luz da grande reunião do povo de Deus, um acontecimento que engloba os propósitos últimos da realidade escatológica? “As línguas cessarão”, declara Paulo, provavelmente “substituídas por algo mais perfeito, onde a comunicação não requer mais linguagem.”[279] Gostaríamos de reiterar, com base em nossas discussões anteriores, que a comunicação não depende apenas da linguagem, nem que a função fundamental das línguas reside apenas em facilitar a comunicação[280]. Poderíamos ainda apontar que a linguagem não foi especificamente escolhida por Deus como meio de comunicação, e o propósito final da Palavra transcende em muito a comunicação convencional, destacando a importância de se engajar em um relacionamento que ultrapasse as barreiras linguísticas. No entanto, ao enquadrar a questão em termos do propósito último das línguas, ela serve como um lembrete da profunda importância do íntimo, que está no cerne das línguas, bem como dos aspectos vulneráveis e potencialmente contingentes que não podem ser facilmente descartados, mesmo quando se reconhece a “prioridade do futuro de Deus.”[281] Esta relutância em desistir, esta resistência, não é mera teimosia, mas expressão da profunda ligação entre a Palavra, a fé e o amor, enraizada na esperança. A experiência das abundantes bênçãos do Espírito surge no âmbito da diversidade linguística como uma consequência indireta da existência, ou atualmente oferece um vislumbre da perfeição que antecipa o mundo vindouro?

 

A. Escatologia, universalismo ou ecumenismo

 

         a. Universalismo escatológico

 

É preciso primeiro desativar o terreno de uma escatologia marcada com o carimbo do universalismo. De fato, não é o mesmo considerar ἔσχατον como parte da “prioridade do futuro de Deus”[282] e vê-lo como uma recapitulação final onde a diversidade da criação se extingue. A primeira formulação mantém a escatologia dentro da teologia da criação, que apresenta um Deus que toma a iniciativa e dá vida à sua criação, enquanto a segunda interpreta a diversidade da criação como um sinal de finitude ou contingência, percebida como imperfeição. As duas abordagens não são contraditórias. A finitude é inegável quando consideramos o mundo, assim como sua contingência em relação a Deus. Talvez o mesmo aconteça com a criação, mesmo que este não seja o mundo. A marca do universalismo, não o universal em si, mas a ideologia do universal, pode ser identificada por meio de várias noções ligadas ao discurso escatológico, e são problemáticas por seu impacto no presente em termos da evolução da diversidade, incluindo a diversidade linguística.

 

         1. Convergência e contingência: Explorando a escatologia cristã

 

O primeiro elemento problemático é a noção de convergência. A imagem de que caminhamos para o mesmo fim, o mesmo ἔσχατον, já sugere a ideia de que devemos nos encontrar novamente no final da jornada, a metáfora de uma “convergência universal”[283], que, por exemplo, é expressa por Teilhard de Chardin através da imagem do cume. O caminho percorrido seria insignificante enquanto nos uníssemos em Deus. O τέλος da viagem justificaria retrospectivamente o processo. No entanto, de uma perspectiva teológica puramente interna, colocar o ἔσχατον nesses termos é problemático. Em primeiro lugar, na teologia cristã, é Deus quem vem ao encontro da humanidade. Além disso, a noção de convergência tende a ser entendida como homogeneização. A diversidade linguística, através do discurso escatológico, enfrenta a crítica que sofre da opinião comum, de que é um desvio, uma digressão e não o caminho direto para Deus. Diante disso, vamos simplesmente reiterar: é Deus quem vem ao encontro dos homens. E Ele vem através da contingência. Melhor ainda, chegou, através do acontecimento de Jesus, através desta contingência. Esta vinda, inscrita na história, significa que a escatologia não é apenas a esperança das coisas finais, mas a sua contemplação em Jesus Cristo.

A singularidade da escatologia cristã reside no anúncio de uma realização que não é apenas futura, mas já realizada. Essa afirmação de uma realidade já cumprida está no coração da fé cristã, onde a vinda, morte e ressurreição de Jesus significam a atualização dessa realização. A experiência tangível do amor de Deus manifestado torna-se uma realidade concreta para os crentes. Essa realização engloba tanto a conclusão quanto a realização perfeita, a completude final e um estado de totalidade e reconciliação. Numerosos testemunhos bíblicos apoiam esta visão, incluindo um padrão de pensamento característico encontrado em Mt 6,5, onde Jesus afirma que os hipócritas “já receberam sua recompensa”[284], e na afirmação Τετέλεσται (“Todas as coisas se cumprem”) encontrada em Jo 19,30.

De fato, essa afirmação de realização e realização se harmoniza bem com a comparação de Panikkar entre o conceito budista de “śūnyatā” (vazio) e o conceito cristão de “πλήρωμα” (plenitude). Poder-se-ia argumentar, com base nas ideias de Panikkar, que o vazio não está ausente no relato cristão: a Encarnação está intrinsecamente ligada à kenose e à humildade de Jesus Cristo (Fp 2,5-11); o túmulo está vazio como testemunho do poder transformador da ressurreição; a teologia cristã, em sua busca de compreender a realização, refletiu sobre a ausência; e a devoção cristã muitas vezes abraçou a noção kierkegaardiana de que “a cruz está vazia porque espera por você.”[285]  Ao traçar paralelos entre vazio e plenitude, afirmamos a natureza absoluta e efetiva da realização já realizada, distinguindo-a de uma interpretação reducionista que percebe a primeira como meros vislumbres da segunda (ἀρραβών Ef 1,13-14).

 

         2. Perfeição estática ou realização dinâmica: O caso do amor

 

A noção problemática relacionada ao discurso escatológico é a de perfeição. Como sugere Dieter Zeller, Paul provavelmente está apontando para um meio de comunicação que é mais perfeito do que a linguagem. Uma dimensão de ἔσχατον deve ser necessariamente a perfeição. Em seu sentido literal, entendemos essa noção como a organização da história cósmica de acordo com um τέλος, um objetivo ou um fim. É, nesse sentido, uma conquista ou uma perfeição. Aquilo que pertence a um τέλος pode ser descrito como τέλειος, α, ον, ou seja, perfeito. De fato, os crentes são chamados a esse fim último, concebido como uma conquista que o primeiro evangelho parece indicar ser também Deus[286]. No entanto, mais uma vez, não deveríamos reconhecer que esta conquista já teve lugar e que podemos regozijar-nos por termos conhecido este τέλος e aquele que é τέλειος? A rigor, a perfeição a que somos chamados está mais enraizada no presente, no evento de Jesus Cristo, do que no futuro[287]. A perfeição a que somos chamados aplica-se a este mundo e assume a forma de santificação (ἁγιασμός). Consiste em conformar-se com o Santo (1 Ts 1,4; 4,7-8), não em ganhar a Deus, mesmo que ganhando a Deus signifiquemos obter um refúgio no final da jornada. A escatologia inclui outra coisa nas palavras de Paulo: as línguas cessarão, mas o amor nunca falhará ou desaparecerá. O discurso escatológico aqui se refere a uma vida após a morte, depois do ἔσχατον propriamente dito, onde o amor é o que perdura eternamente. No entanto, há uma tensão entre a noção de perfeição e a de amor se quisermos manter seu aspecto de realização. A perfeição tem um sentido estático, que se alinha melhor com o nada, em contraste com representações inerentemente dinâmicas do amor. Voltaremos a isso.

           

         3. Examinando o significado de nova creatio: Renovação ou destruição?

           

O conceito de nova creatio tem suas origens em Deutero-Isaías, particularmente na passagem de Is 65,17–66,2, que começa com as palavras: “Porque eu vou criar novos céus e uma nova terra; Eles não se lembrarão nem virão à mente.” Significa uma Terra completamente nova ou uma Terra renovada? Implica uma terra onde injustiças passadas foram corrigidas a ponto de a memória ser aliviada e os corações serem libertados, ou é mais como uma tabula rasa, como se vê no relato do dilúvio? A sobrevivência das línguas e das culturas está entrelaçada com essa questão. De fato, a teologia da criação de Deutero-Isaías coloca a questão: “"Um país pode nascer em um único dia? Uma nação pode ser gerada de uma só vez?” (Is 66,8cd). Há pelo menos três argumentos bíblicos que desafiam a interpretação da nova creatio como creatio nova ex nihilo. Primeiro, Gn 1,1–2,4a não implica creatio ex nihilo. Deus cria trazendo ordem ao caos e estabelecendo um espaço para a vida. Ao contrário dos relatos da luta contra o caos encontrados no Antigo Oriente Próximo, Deus é retratado como tendo poder sobre o caos. O caos não aparece vencido ou abolido[288], mas o caos não é o nada. Em segundo lugar, o relato do dilúvio em si não descreve a aniquilação total; Noé, sua família, todos os animais e a terra são preservados. Em terceiro lugar, a conclusão do relato do dilúvio inclui a promessa de Deus: “Nunca mais haverá dilúvio para destruir a terra” (Gn 9,11c). Esta promessa estende-se a Noé, aos seus descendentes e a todos os seres vivos (Gn 9,10) e constitui a base da aliança entre Deus e a terra (Gn 9,13). Portanto, é mais plausível considerar essa nova creatio como parte de uma creatio contínua, como discutido no capítulo anterior desta tese. Não se pode descartar a escatologia que imagina um fim final resultando na destruição da antiga criação por causa da liberdade de ação de Deus. No entanto, contrasta com 1) uma orientação escatológica orientada para o futuro justamente porque já ocorreu, e 2) o testemunho escatológico integral do cristianismo, que não imagina a aniquilação da criação, mas a transformação do presente para a retificação da injustiça. Esta, em essência, é a esperança do cristianismo, uma perspectiva que proporciona uma transformação “orientada para o futuro e para o futuro” do presente[289]. A escatologia contemporânea não pode simplesmente descartar a “esperança messiânica futura para o mundo”[290], relegando-a exclusivamente a uma vida após a morte, sem alterar substancialmente o testemunho bíblico. Tal rejeição colocaria em xeque o cumprimento já alcançado em Jesus Cristo e ignoraria a materialidade do que foi conquistado através da cruz.

Diante de um certo gnosticismo que afirmaria que “Cristo veio para salvar os homens, não para perpetuar o mundo”[291], talvez a exegese nos convide a ver que, quando Deus destrói o passado, ele se preocupa em preservar a diversidade. Isso fica evidente na diversidade da vida no episódio do dilúvio. Também é visto no caso de Babel: Deus intervém para estabelecer a diversidade linguística. Desta forma, seguimos ainda a lógica de Christopher Rowland quanto às implicações em termos de esperança, especialmente a questão teológica da busca por um mundo melhor aqui e agora, aqui na Terra, em oposição a uma esperança adiada para o além[292].

Da mesma forma, o conceito de “homem novo” deve ser incluído entre os elementos cristãos que Pierre Gisel propõe desconstruir[293]. A καινὴ κτίσις[294], ou nova criação, em questão, não se refere tanto a um novo homem, expressão que só faria sentido em referência a Jesus como o novo Adão, mas sim no sentido de uma criação renovada, reconciliada com seu Criador (“Em Cristo, Deus estava reconciliando o mundo consigo mesmo” 2 Co 5,19a). A ideia de reconciliação e restauração não se alinha bem com a de destruição total.

            Ao contrário da suspeita que pesa sobre as línguas minorizadas, esta é uma oportunidade para mostrar que não é o próprio passado que está condenado. Assim como a novidade não é inerentemente um traço valioso[295], a abolição do passado, por si só, não constitui emancipação. Como nos lembrou Jürgen Moltmann: “Quando hoje lamentamos ‘a perda de um centro’ em uma sociedade em desintegração, isso expressa o anseio por uma integração religiosa e pré-moderna dos homens que formam uma sociedade. [...] Hegel foi um dos primeiros a perceber a emergência da sociedade moderna emancipada, que destrói todas as forças da tradição [Herkunftsmächte], e a analisá-la, seguindo a economia nacional britânica, como um ‘sistema de necessidades’.”[296] Ao falar das forças do passado ou do patrimônio [Herkunftsmächte], isso não implica que o passado ou o patrimônio possuam poder inerente? Com Crossan em mente, o que devemos nos preocupar aqui é com a noção de poderes. Não é a linhagem ou o patrimônio em si que deve ser destruído, mas sim os poderes associados a eles. O relato de Gne, que se distingue dos relatos de Chaoskampf como mencionado acima, mostra assim que Deus não é o criador imaginado por Nietzsche[297]. A grandeza e a onipotência de Deus também residem em sua capacidade de se abster de recorrer à destruição ou aniquilação.

A diversidade linguística não está destinada ao desaparecimento definitivo, alimentando os desejos insaciáveis de uma inclinação gnóstica para erradicar o mundo, sucumbir à homogeneização, ao perfeccionismo ou às armadilhas estreitas que moldam identidades exclusivas. Sob a ação do Espírito, as línguas se manifestam e se diferenciam como a experiência íntima no cerne do aspecto criativo de cada indivíduo, não da linguagem em si, mas de seu uso[298].

B. Face a Face: Autolimitação ou Autotranscendência de Deus

 

         a. Face a face

 

Há um aspecto adicional a considerar em relação à passagem paulina, e tem a ver com uma distorção em nossa percepção, como Paulo menciona: “Agora vemos através de um espelho, de uma maneira escura [ἐ ν αἰνίγματι]; mas depois veremos face a face” (1 Co 13, 12). A frase em si possui uma qualidade enigmática. Isso sugere que, embora possamos conhecer a Deus neste mundo, nosso conhecimento Dele é indireto, como olhar para um reflexo em um espelho. No entanto, chegará um momento em que poderemos vê-la πρόσωπον πρὸς πρόσωπον, isto é, direta e intimamente (1 Co 13,12). No entanto, esse encontro direto não implica fundir ou perder a individualidade em Deus. Implica que a pessoa permanece em um relacionamento diferente com Deus, participando de um encontro pessoal. O imediatismo da comunicação divina, reservado aos tempos escatológicos, não indica a cessação total da comunicação.

A noção de autolimitação pode ser associada a Whitehead, Hartshorne e, por extensão, a uma teologia do processo. A ideia de um Deus relacional também parece ser tomada a partir dessa perspectiva. No entanto, ambas as ideias também podem derivar da teologia dialética[299]. Além disso, como vimos no capítulo II, o κοινωνία é inerentemente relacional, e a kenosis de Jesus Cristo descrita por Paulo (Fp 2,5-11) se alinha com a autolimitação da primeira pessoa da Trindade. Em última análise, a doutrina cristã abraça prontamente a noção de autolimitação, e a ideia de encontro face a face, embora adiada até o fim, está de acordo com a realidade de um Deus pessoal.

Para ser todo-poderoso, Deus não é onivolente: Deus não quer tudo[300]. A boa vontade de Deus manifesta-se precisamente na transição da posse do poder para o querer: ter o poder de tudo não significa querer tudo. Todas as coisas são possíveis com Deus (Mt 19,26; Lc 1,37; Gn 18,14), e Deus oferece um mundo de possibilidades contra a sua própria vontade, pondo em risco a sua própria vontade ou o seu próprio devir. No entanto, embora Deus deseje essa possibilidade e liberdade para a humanidade, Ele escolhe não querer certos elementos dessa possibilidade. Isso levanta a questão sobre a essência de Deus: Deus tem a capacidade de querer, ou está simplesmente além de Sua capacidade? Há testemunhos bíblicos que indicam o que Deus não pode fazer (“na esperança da vida eterna, que Deus, que não pode mentir, prometeu desde antes do início dos tempos”[301]; Tt 1,2b; “Teus olhos são puros demais para ver o mal; não se pode tolerar o mal”; Hc 1,13). Mas também sabemos que Deus venceu a morte. Ou ele desejava a morte para os vivos e sua vitória sobre ela é mais uma mudança, ou, como os cristãos acreditam, há uma vitória sobre a morte e Deus pode – aqui, mais do que Ele quer – algo que Ele não podia antes. A morte vencida testemunharia um devir de Deus e uma autotranscendência de Deus que não são contraditórias com a noção de autolimitação, mas implicam que essa autolimitação não é superficial. Ela limita Deus e o força, e Ele se força a vencer sua própria vontade. Ao fazê-lo, Deus supera-se segundo uma lógica baseada na benevolência, no querer o bem e o amor.

Nesse contexto, qual é o significado ou o papel da cultura, da boa vontade humana e, potencialmente, das línguas em que o Espírito está trabalhando? A ideia de colaboração entre os seres humanos e a obra de Deus é inerente à teologia do processo. Poder-se-ia argumentar que, uma vez que Deus é o iniciador e o que está em ação, não há colaboração em sentido estrito[302]. Como diria o Mestre Eckhart, Deus reza a si mesmo. A humanidade não teria utilidade para Deus, não interessaria. No entanto, estamos cientes do interesse de Deus em Sua criação. E poderíamos facilmente postular que esse interesse reside na diversidade e contingência oferecidas pela criação desejada por Deus, juntamente com a liberdade e as surpresas que vêm com ela. As línguas, e a própria linguagem, oferecem precisamente estes aspectos a cada ser humano. O conhecimento parcial mencionado por Paulo deve ser entendido em um sentido negativo: temos conhecimento imperfeito. No entanto, não é proibido entendê-lo de forma mais positiva: talvez esse viés não esteja destinado a desaparecer. A ação de Deus neste mundo, sem constranger ou obrigar Deus, não pode ser aparentemente parcial sem contradizer os atributos divinos. Se Deus não se comunica plenamente com os seres humanos neste mundo, isso contradiria a ideia de que Deus não está totalmente presente no que diz respeito a Deus. O que nos toca não pode fazer parte de Deus a menos que imaginemos que Deus é divisível. Deus não se comunica plenamente, mas está plenamente presente naquilo que Deus revela de Si mesmo. Aqui devemos nos apoiar nos paradoxos das teologias dialéticas[303].

 

         b. A autolimitação de Deus no contexto escatológico

 

Podemos conciliar a necessidade urgente de abster-nos de nos apegarmos a Deus, de pensarmos de uma forma que beira a idolatria, com a manifestação de Deus na diversidade linguística e a rejeição do desaparecimento de línguas e culturas marginalizadas? Podemos conciliá-la com a experiência que a Escritura anuncia precisamente: “E eles saberão que eu sou YHWH, seu Deus, que os tirou do Egito para habitar no meio deles” (Êx 29:46)? Antes de discutir a autolimitação, Jürgen Moltmann, seguindo os passos de Walther Zimmerli, primeiro considera a revelação como a “auto-revelação de Deus”[304]: Deus pode ser reconhecido porque se fez conhecido e se faz conhecido como reconhecível[305]. Será que esta marca de reconhecimento, de que Deus é particularmente sensível à vulnerabilidade e aos oprimidos, a sua auto-manifestação na espoliação e humilhação da cruz, que Ele nos ensina neste mundo, fala do escaton? É absurdo que a maneira como Deus se faz conhecido neste mundo não só nos diga algo sobre a vontade de Deus para este mundo, mas também para um futuro do mundo? Portanto, a realização manifestada neste mundo exige uma segunda/última realização? A autolimitação de Deus se aplica a este mundo na expectativa de uma realização que seria a perfeição, isto é, a fusão e o fim, sem o devir, sem a temporalidade de Deus, sem a possibilidade de um encontro face a face?

 

         c. Autoaperfeiçoamento de Deus e do Futuro de Deus

 

A afirmação aparentemente contraditória da esperança cristã sustentada entre duas realizações encontra sua justificativa na afirmação do devir de Deus: “Sendo plenitude e amor hoje, o próprio Deus é sempre o criador de novas situações. É capaz de autotranscendência para uma nova realização, uma nova criação do nada ([306]creatio ex nihilo).” Essa concepção, salvaguardando a liberdade divina, acomoda a ideia de realização concebida como incompletude. A incompletude é aquilo que nunca deixa de ser completado. Não deveríamos manter na noção de realização o mesmo aspecto incoativo daquilo que nunca deixa de ser cumprido? Por um lado, devemos enfatizar a completa liberdade de Deus para fazer e desfazer, tomar ou retomar. Essa liberdade de Deus nos lembra que a realização ou realização ou ἔ [307]σχατον só tem significado de uma perspectiva humana. Por outro lado, a concepção de um Deus pessoal pode garantir que Deus participe deste fim dos tempos para a humanidade, encontrando e acolhendo a sua criatura, mas Ele mesmo não pode ser limitado ou vinculado por esse fim último. Não pode haver realização ou ἔσχατον para Deus além de Sua participação organizacional, Sua iniciativa, na reconciliação. Além disso, a liberdade de Deus é dada a conhecer através de um princípio organizador, o amor, e mais precisamente de acordo com o princípio do amor que sempre abunda (1 Tm 1, 14). A realização feita neste mundo não seria apenas uma afirmação voluntarista, mas um reconhecimento honesto. Não seria apenas uma questão de já aqui e ainda não, mas aqui e agora através de uma realização já realizada e nunca terminada. Ela não deixa de ser cumprida não pelo fracasso, mas pelo desígnio. O segundo ou último cumprimento deve diferir completamente em natureza ou objetivo? Poderia estar plenamente presente e ainda em processo de devir? Em suma, podemos imaginar ou esperar que Deus permaneça um Deus pessoal depois de ἔ σχατον? É o que sugere a Escritura, que, ao anunciar Deus além de toda representação, nos leva a desejar um dia contemplar o seu rosto. Assim, Deus se revela e parece desejar ser conhecido.

 

C. Esse deslocamento que opera a esperança[308]

 

            Se ἔσχατον só faz sentido a partir de uma perspectiva humana e se a vida humana está entre duas conquistas que não parecem impedir o futuro de Deus e Sua relação com a humanidade, qual é o significado da diversidade de uma perspectiva escatológica? Que sentido pode ser atribuído à sobrevivência da diversidade diante de uma escatologia recapituladora, um retorno ao Um?  Poderia ἔσχατον ser a chegada de um mundo de encontro exclusivo com Deus, uma dimensão na qual as criaturas não são mais propensas a decepções mútuas[309]? Seria tempo de uma redução radical em que uma linguagem e conceitos inequívocos já não pertencem à ilusão, mas a uma plenitude de comunicação? Essas questões revelam uma dependência de uma escatologia antropomórfica e uma dificuldade em entender ἔσχατον em termos de eternidade. A escatologia cristã é marcada pelo sinal da ressurreição, mas não é o paraíso do paganismo antigo. Se o ἔσχατον só faz sentido de uma perspectiva humana, então provavelmente é apropriado abordá-lo com base em seu impacto no tempo presente. A rejeição da escatologia como futurologia convida fortemente a tal abordagem. Além disso, a escatologia só faz sentido como anúncio do Evangelho no tempo, pelo tempo, tendo ocorrido no tempo, não como uma antecipação de um mundo futuro, mas como uma conformidade (αγιασμός) ao evento ocorrido. Certamente, a escatologia coloca a ação humana em tensão entre as duas conquistas mencionadas acima, mas o chamado à ação, o pedido μετάνοια (arrependimento), só pode ocorrer no tempo e, poderíamos dizer, em benefício do tempo. O Evangelho, o querigma, convida-nos a enveredar pelo caminho, a levar uma vida no “seguimento” (Lc 14, 25-33). As provas não são negadas (“Aquele que não carrega sua cruz e me segue não pode ser meu discípulo” Lc 14,27). Pode-se rejeitar o dualismo e o painismo e, no entanto, em meio às dificuldades, encontrar conforto no reconhecimento e na integração da dor e da tribulação, talvez de forma contraintuitiva em relação ao Evangelho. Ao contrário da possível satisfação com os assuntos mundanos mencionados acima, a insatisfação com o mundo atual é enfatizada aqui. No caso das línguas minorizadas, estas são duas faces da mesma moeda: oferecem uma satisfação fundamental, a alegria de um certo imediatismo entre a língua e a criação, mas também nos permitem ver, em contraste, a formação de línguas vazias e sem vida. Em termos escatológicos, a esperança se alinha com a noção de vocação e vocação e, em última instância, com a dureza da realidade. “Nosso compromisso com ‘assuntos mundanos’ inevitavelmente envolve perdermos o controle de nosso destino em vez de ganhar controle sobre ele.”[310] É para a esfera pública que a esperança nos conduz, e é dentro dela que a esperança nos mantém. “Sabemos que a esperança vai nos mudar, de maneiras que não entendemos totalmente e, na verdade, de maneiras que atualmente não queremos entender totalmente, muito menos experimentar.”[311] A esperança, então, convive com o sentimento de terror.

Mathewes oferece uma descrição convincente da esperança cristã em relação ao engajamento público/político. Pode descartar um tanto apressadamente em outros modelos o que corresponde justamente à sua descrição fenomenológica. No entanto, ele também descreve esses modelos como imanentes e realistas, o que parece ser sua postura também. Certas formas de quietismo, status quo ou liberacionismo certamente não são formas de gnosticismo. Apesar disso, Matheus dissocia a noção de esperança da obediência a um plano ou projeto. O plano só pode ser divino, e a esperança nos mergulha nele como em um grande banho do qual nem sequer temos representação. Ela nos mergulha nela e nos mantém nela, desde que, graças a Mateus, nos lembremos de que o que nos acontece é justamente a esperança em ação.

Por fim, pode-se pensar na citação atribuída ao pastor Charles Wagner: “Qual é o valor de um homem? É o que ele oferece de si mesmo. O homem é uma esperança de Deus.”[312] O que traz o bem através dos sofrimentos encontrados é, sem dúvida, o sentimento de ter sido colocado ali, e de ter sido colocado ali não para salvar línguas ou outros, mas para dar testemunho do amor de Deus pela variação e diversidade, para encontrar “o irmão como graça”[313], mesmo no seu próprio território,  e não se baseia em ideias práticas e preconcebidas, incluindo sua própria língua e cultura. Como graça, o irmão ou irmã está lá para nos mudar, não para nós mudá-los.

 


 

Conclusão

 

 

 

 

“Se você abstrai do preto, do frio, do pesado, do denso, das qualidades que dizem respeito ao gosto [...] a substância desaparece”.

 

Basílio de Cesareia, Hexaemeron[314]

 

 

 

Nem todas as línguas morrem pacificamente. Longe disso. Não devemos declará-los extintos prematuramente. “As línguas chegarão ao fim”, profetizou Paulo, presumindo um destino semelhante para a mensagem e o conhecimento dos profetas. Ele tinha em mente falar em línguas e gnose, como o contexto sugere? No final, isso não importa muito. O que realmente importa é que “o amor nunca morre”[315]. Podemos antecipar a eventual extinção das línguas, reconhecendo que algumas delas vão além da mera iluminação ou encarnação temporal. Não são simplesmente aspectos coincidentes de uma substância que poderia igualmente existir sem eles. Essa questão já havia sido levantada por Basílio de Cesareia, para quem a reflexão teológica não era indiferente ao papel da linguagem, interesse que ele compartilhava com Gregório de Nissa. Schleiermacher coloca de forma diferente: “Até o simplesmente universal, apesar de encontrar-se fora do domínio do particular, é iluminado e colorido pela língua.”[316] Talvez o cristianismo, como religião da encarnação, não precise depender de noções de substância ou universalidade para entender isso. A própria noção de línguas minorizadas, como mencionamos na introdução, desvia-se de seu propósito se levar ao apagamento dos rostos e vozes das pessoas que incorporam essas línguas. Falantes nativos e novos falantes testemunham esse amor duradouro que engloba tanto o berço (la lenga del brèç)[317]quanto o túmulo e, através do verbo occitano ‘espelir’, tanto o nascimento quanto o renascimento. Da mesma forma, a meditação de Paulo sobre o amor precede sua reflexão sobre a ressurreição. “O que semeis não ganha vida se não morrer”[318] recorda-nos Jo 12,24: «Se o grão de trigo não cair na terra e morrer, fica só; mas, se morrer, dá muito fruto”. Por isso, nos concentramos nos frutos produzidos pelos falantes de línguas minorizadas e exploramos as implicações teológicas desse crescimento frutífero.

Em nossa exploração exegética, esperamos ter mostrado como a confusão de línguas em Babel não é antitética ao derramamento e exaltação de línguas em Pentecostes. Embora este último seja frequentemente visto como um castigo de acordo com uma leitura não rigorosa de Gn 11, que descreve a dispersão linguística como desordem, perspectivas alternativas lançam luz sobre uma condenação das tendências humanas em direção à uniformidade e à unidade idolatrada, e, ainda mais problemática nesse contexto, impulsionada pela agência humana em vez da intervenção divina. Deus ordena e promove a diversidade linguística. A vontade de Deus é apresentada como uma característica definidora do Criador, que possui a capacidade de intervir em Sua criação a qualquer momento, promovendo a inovação e a novidade. A vontade divina encontra sua encarnação na obra do Espírito, que está continuamente ativo no mundo. As línguas, neste contexto, testemunham a natureza pessoal e relacional de Deus. Em particular, as línguas minorizadas encontram consolo nele, reconhecendo o Todo-Poderoso como aquele que voluntariamente limita seu poder, distanciando-se da figura de César. Tal Deus nos lembra da dignidade inata presente em toda criatura e nos chama a abandonar ideologias ou estratégias absolutistas.

Essa benevolência bíblica para com as línguas levou nossa pesquisa a explorar o lugar das línguas minorizadas em relação a três figuras ou três maneiras de criar comunidade (κοινωνία). Primeiro, examinamos as implicações teológicas das línguas em conexão com as pessoas da Trindade. Em seguida, abordamos a mesma questão em relação a um κοινωνία compreendido através das lentes do universal. Finalmente, estreitamos o escopo da relação através do tema dos outros. Nos três casos, acreditamos que nos concentramos na força motriz por trás do relacionamento.

Nosso segundo capítulo, que teve como objetivo examinar como as línguas minorizadas foram ordenadas para os povos específicos da Trindade, certamente representa a seção mais especulativa de nossa pesquisa. Em todos os lugares, Deus está ativamente trabalhando. Em todos os lugares, Deus toma a iniciativa. Mergulhar mais precisamente nos modos de relacionamento entre as três pessoas do Deus trino significava, em certa medida, abstrair e separar um pouco um princípio que sempre consideramos inerente e inabalavelmente encarnatório. O exame do universalismo, que não é exatamente a universalidade, permitiu-nos, ao contrário, estudar uma força inerente à criação de uma comunidade onde a humanidade, mais do que Deus, toma a iniciativa. Observamos os possíveis efeitos prejudiciais sobre a diversidade, verificando que o desgaste dos vivos, seja biológico ou linguístico, não é resultado de qualquer entropia ou fatalidade. Nas palavras de Eberhard Jüngel, “o mundo moderno tende a se tornar cada vez mais o que o homem faz dele.”[319]Assim, nos voltamos para outra força motriz que cria relacionamento e, em última análise, comunidade, examinando uma relação fundamental, a dos outros. Escolhemos nos concentrar na mudança radical trazida pela parábola do Bom Samaritano. De fato, as línguas minorizadas colocam de maneira particularmente sutil a questão do eu e do outro, de uma compreensão ou apropriação do outro que nem sempre é bem-vinda. Devido à vulnerabilidade de seus falantes e ao potencial desaparecimento da comunidade que expressam e permitem, essas línguas minam e, ao fazê-lo, nos lembram do que temos a ganhar por não nos entendermos completamente.

Se por vezes afirmamos que as línguas não são úteis principalmente para a comunicação, é também para enfatizar este ponto: às vezes há muito a ganhar admitindo que não nos entendemos completamente, reconhecendo que não atribuímos as mesmas realidades às mesmas palavras. Como preservar, em nome do diálogo, o que cada tradição tem de concreto e não deve ser apagado pela ilusão de termos ou noções comuns? Uma primeira resposta seria sempre lembrar como preâmbulo, antes de cada diálogo, como, nas palavras de Pascal, nos encontramos em uma situação de possível engano mútuo. Este é certamente um pré-requisito para um segundo passo que pode consistir em “buscar o acordo dentro do espaço das variações, onde reconhecemos que nossas discordâncias são verdadeiramente nossas.”[320] A noção de variação nunca está longe.

Finalmente, quisemos abordar a questão da diversidade linguística a partir de uma perspectiva escatológica. Que significado podemos atribuir à variação versus o que é percebido como a resolução final? Abordamos a dimensão escatológica através da noção de esperança, que inexoravelmente nos devolve ao mundo, não mais visto como um lugar de implacável, mas como um tempo de ação. A escatologia nos permite participar da tensão entre a agência humana e nos leva de volta a um ponto de partida, mas transformado ou sustentado pela esperança. Seguindo a compreensão de Charles Matthewes sobre a esperança que nos envolve no mundo em mudança, consideramos como a preservação da diversidade linguística, sempre contemplada na perspectiva das línguas minorizadas, está inserida nessa arena pública onde a esperança nos guia e onde a esperança nos mantém: “Sabemos que a esperança nos mudará,  de uma forma que não compreendemos completamente e, de fato, de maneiras que atualmente não desejamos compreender plenamente, muito menos experimentar.”[321]

            Em resumo, procuramos mostrar como a diversidade linguística e o fenômeno linguístico fundamental da variação podem ser entendidos como parte da revelação de Deus. Mais do que ser simplesmente um exemplo extremo, acreditamos que as línguas minorizadas apresentam uma encarnação concreta do Verbo Encarnado. No entanto, não deve haver mal-entendidos. Certamente, nossa indagação pode ser vista como parte da pergunta “Onde está Deus?”[322] Seguindo o julgamento de Claude Geffré sobre as religiões do mundo[323], que nos acompanhou ao longo desta pesquisa, poderíamos responder com um julgamento positivo sobre as línguas do mundo. Poderíamos até, com todas as ressalvas apropriadas a uma teologia protestante, ou apesar dela, reconhecê-las como estando a serviço da revelação[324]. Poderíamos acrescentar: toda a diversidade não é Deus[325]. Digamos melhor: nada da diversidade é Deus, assim como Deus não estaria na assimetria ou na dissonância. E embora afirmemos que a multiplicidade é, senão o modo privilegiado de expressão do Uno, um de seus modos de expressão, não afirmamos que toda diversidade é um modo de expressão do Uno. Vimos também que a variação humana não é comparável àquela encontrada na natureza: como enfatiza a Escritura, os seres humanos são todos irmãos e irmãs. A variação linguística adquire assim um significado particular. Deus deseja a multiplicidade. As línguas minorizadas contribuem para a nova e perpétua criação que Deus produz em nosso presente. A linguagem certamente enfrenta a radical inadequação de qualquer língua para falar do Deus inefável. Mas o silêncio em si é inadequado, como apontou Eberhard Jüngel[326].

            No entanto, esta investigação, a partir de nossa própria admissão, uma abordagem inicial para uma abordagem mais frontal da questão das línguas minorizadas em suas implicações teológicas, visa menos, mesmo nada, a metafísica ou a teologia natural, mas sim chamar a atenção para um princípio criativo, a variação, às vezes percebida como um sinal de imperfeição. Ver a diversidade linguística, assim como a diversidade religiosa, como uma riqueza, um reflexo do Espírito e da sua abundância criativa, é recordar a dignidade inerente a cada um de nós quando somos ridicularizados pelo uso da nossa língua ou pela perseverança de um modo de vida. É importante lembrar que as ramificações dessas perguntas não são triviais, mas acabam tocando a honra de Deus, ou nos levam a desistir do potencial e dos benefícios da criação. As línguas minorizadas levam ao autoconhecimento, são o refúgio de um discurso frágil, abrigam uma consciência da injustiça vivida diariamente na frustração de um ato espontâneo e profundamente pessoal: falar em sua própria língua, nomear seu ambiente e lugares familiares em sua língua. Cada língua minoritária torna-se, para outras línguas minorizadas, um marcador da irredutibilidade de todas as outras, de cada uma, em comunhão universal. As línguas não morrem de morte natural, mas “em última análise, a vítima e o perseguidor são um só. Só podemos compreender a unidade da raça humana se pudermos compreender, em todo o seu horror, a verdade dessa equivalência final.”[327] É necessário, portanto, rejeitar o desaparecimento das línguas como destino e aplicar às línguas o que Claude Geffré chama de “responsabilidade compartilhada das religiões pelo futuro da humanidade e pela preservação do planeta Terra.”[328] Se a responsabilidade da teologia é manter uma linguagem viva, não equívoca, mas nunca unívoca, podemos reafirmar com Jenson: “Teologia é pensar sobre o que dizer para estar dizendo o Evangelho”[329]. É dizer “Jesus Cristo!”, uma confissão de fé, um anúncio e um lema que rejeita todo fatalismo. É também isso que Christopher Rowland nos lembra quando diz que “a antropologia teológica, informada pela pneumatologia, questiona o fatalismo”[330] e, com ele, as razões da desesperança ou do abandono da mudança. Esta aflição perpétua dos mais fracos, mesmo que aos olhos de alguns sejam os vencidos ou, diga-se claramente, os perdedores, encontra um eco inegável tanto na narrativa bíblica como na mensagem transmitida pela Igreja de Jesus Cristo, a Igreja de todas as línguas (Ap 5, 9).

Talvez agora seja o momento de nos concentrarmos menos no desaparecimento das línguas minorizadas e mais na sua presença contínua, mesmo nesta hora que cada vez mais imaginamos como um fim dos tempos. Nessa fantasia apocalíptica, não seria o menor mérito dessas línguas terem prosperado em grande número até tempos recentes, assim como as línguas que se tornaram hegemônicas. No mundo bíblico, é no início do crepúsculo que um novo dia começa. Nos céus ardentes da noite, do crepúsculo ao amanhecer, de um Pentecostes a outro, continuemos a ver na criação o Reino já presente.


 

Bibliografia

 

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[4] Ibid.

[5] André Wénin, « La nourriture carnée – Réflexions à partir de la Torah », Communio n° 259 (2018), 56.

[6] Ibid, 51.

[7] Ibid, 52.

[8] Ibid, 54.

[9] Paul Beauchamp, Testament biblique (Paris: Bayard 2001), 27; citado por Wénin, “La nourriture carnée”, 54.

[10] Römer, “Milieux bibliques”, 406.

[11] David M. Carr, Genesis 1–11, IECOT (Stuttgart: Kohlhammer, 2021), 991 n 5a. O termo “povo”, “Volk” em alemão, não é em si um termo progressista, no entanto: “É legítimo falar de um povo em relação a esse todo, uma vez que ele não tem direito à consideração desfrutada, pelo Estado, pelo povo oficial”. Badiou inclui tanto “o núcleo duro da massa inexistente” quanto os povos que lutam para obter a nacionalidade no âmbito de uma luta decolonial. Ver especialmente Alain Badiou, “Vingt-quatre notes sur les usages du mot peuple”,em Pierre Bourdieu, Judith Butler, Georges Didi-Huberman, Sadri Khiari, Jacques Rancière, Qu’est-ce qu’un peuple ?, Paris, La Fabrique édition, 2013, 18; ed. esp. ¿Qué es un pueblo?, trad. Cecilia Gonzáles y Fermín Rodríguez (Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2014), 17. 

[12] Markus Witte, “Völkertafel”, in WiBiLex, artigo publicado em julho de 2011, última versão atualizado em 20 de agosto de 2018, https://www.bibelwissenschaft.de/stichwort/34251/,(Último acesso: 1 de setembro de 2023).

[13] Carr, Genesis 1–11, 293-294.

[14] Ibid., 308.

[15] Ibid, 308, n. 56.

[16] Ibid.

[17] Römer, “Milieux Bibliques”, 406: “A diferenciação de acordo com as línguas anda de mãos dadas com o estabelecimento de grupos humanos em diferentes lugares. Entre Gn 9 e 11, a Bíblia hebraica preservou três relatos contraditórios: Gn 9,18-27 (a embriaguez de Noé), que introduz uma separação e hierarquia entre os filhos de Noé; Geração 10 (La Tabela das Nações) e, em Gn 11,1-9, História da torre de Babel. O texto mais neutro é o de Gn 10: uma lista genealógica contendo um número impressionante de nomes, alguns dos quais ainda resistem à explicação. Em sua forma atual, o texto é confuso; torna-se menos confuso quando percebemos que, dessa forma, combina elementos P e elementos não-P.”.

[18] Ibid.

[19] Albert de Pury, Thomas Römer, Konrad Schmid, L’Ancien Testament commenté: La Genèse (Paris/Genebra: Bayard/Labor et Fides, 2016), 66. 

[20] Ibid.

[21] Römer, “Milieux Bibliques”, 407.

[22] Carr, Genesis 1–11, 330.

[23] E não “para que não aconteça” sejamos dispersos” (forma passiva).

[24] O grego antigo χέω, “verter, derramamento”, corresponde ao sânscrito जुहोति (juhóti) e o fundo latino. Os sufixos συν- e cum- têm os mesmos valores em grego e latim, especialmente como intensificadores.

[25] Carr, Genesis 1–11, 314; anotações 4b e 8a, 315.

[26] Ibid., nota 8a, 315.

[27] Ibid, 332. O comentarista aqui se refere a Josefo Ant. 1.113-114; mas também a Pseudo-Filo 4,7; 6,13-14; e, finalmente, Filo QG 2,82.

[28] Ibid.                             

[29] Carr, Genesis 1–11, 333. O comentarista vai além, apontando que o trecho, de certa forma, proporcionaria “mais base para interpretações contemporâneas a partir de uma perspectiva mais conservadora que considere Gn 11,1-9 como relato dos perigos de uma tirania democrática de um coletivo internacional (por exemplo, as Nações Unidas)”, cf  332.

[30] Ibid., 333.

[31] Ibid.

[32] Ibid., 332.

[33] Carl R. Holladay, Acts: A Commentary, The New Testament Library (Louisville: Westminster, 2016), 94.

[34] Craig S. Keener, “The First Outpouring of the Spirit (1:1–2:47). A Reversal of Babel (Gen 11:1-9)”, in Craig S. Keener, Acts: An Exegetical Commentary, vol. 1: Introduction and 1:1-2:47 (Grand Rapids: Baker Academic, 2012) 842.

[35] Holladay, Acts: A Commentary, 65.

[36] Ibid, 89.

[37] Ibid., 66.

[38] Ibid.

[39] Holladay, Acts, 92 : « The apostles’ ability to speak in other languages[…] should be distinguished from the ecstatic, unintelligible speech in  1 Cor 12-14. ».

[40] Frédéric Martin, Les mots grecs (Paris: Hachette, [1937] 1990), 76.

[41] Ibid.

[42] Ibid.

[43] Lamin Sanneh afirmava que a tradução era a verdadeira linguagem do cristianismo. Lamin Sanneh, Whose Religion is Christianity? The Gospel Beyond the West (Grand Rapids/Cambridge: Eerdmans, 2003), 97. O teólogo de Yale também destacou a contribuição da missão para a preservação das línguas autóctones, cf  Lamin Sanneh, Translating the Message: The Missionary Impact on Culture (New York: Orbis Books, 1989).

[44] Dante Alighieri, De l’éloquence en vulgaire, I, 1, 2, trad. em francês e comentários sob a direção de Irène Rosier-Catach (Paris: Fayard, 2011), 73: “Vulgarem locutionem appellamus eam qua infantes assuefiunt ab assistentibus primitus distinguere voces incipiunt; Vel, quod brevius dici potest, vulgarem locutionem asserimus quam sine pmni regula nutricem imitantes accipimus.”.

[45] Carl R. Holladay, Acts: A Commentary, 93 : « V. 5 suggests Jewish residents living in Jerusalem rather than Jewish pilgrims from outside Palestine who had come to Jerusalem for Passover and Pentecost. ».

[46] Martinho Dibelius, Aufsätze zur Apostelgeschichte (Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, [1951] 51968), 120-162.

[47] Andreas Dettwiler, Simon Butticaz, “Leçon 4: L’œuvre lucanienne (Lc-Ac)”, rev. por Anne Catherine Baudoin, Lição parte do curso “Brevet do Nouveau Testament 1. Introduction au Nouveau Testament” (Université de Genève, 2020), 9. Os autores referem-se, em particular, a Eckhard Plümacher, “Die Apostelgeschichte als historische Monograph”, in Jacob Kremer (org.), Les Actes des Apôtres. Traditions, rédaction, théologie, BEThL 48 (Gembloux/Lovaina: Duculot/Editora da Universidade de Lovaina, 1979), 457-466.

[48] Relacionada às noções de língua minoritária e conflito linguístico, a noção de diglossia refere-se ao fenômeno de monopolização dos usos da língua por uma língua externa, relegando a língua indígena a usos definidos, particularmente em círculos restritos de família, trabalho etc. É também nesse sentido que me referirei à noção de diglossia em nosso estudo. Ver, nomeadamente, José María Sánchez Carrión, “Bilinguismo, disglossia y contacto de lenguas”, Anuario del Seminario de Filología Vasca Julio de Urquijo, vol. 8, n. 1, (1976).

[49] Keener, Acts, 821: “Far more problematic, Luke provides no implication that diglossia was in view or that one should expect the disciples to have spoken only Hebrew on this or another occasion.”.

[50] Holladay, Acts: A Commentary, 93; ver também Keener, Acts, 835.

[51] John P. Meier, “What language did Jesus speak?”, in A Marginal Jew, vol. 1 (New Haven/LonDresEditora da Universidade de Yale, 199), 255-268.

[52] John P. Meier, “Was Jesus illiterate?”, in op. cit., 268-278.

[53] Graydon Colville, “Faith comes by Hearing? About Oral Societies Faith comes by Hearing? About Oral Societies. Bible translation, Audio recordings and the missionary task”, https://globalrecordings.net/en/about-oral-societies, (Último acesso: 11 de janeiro de 2023).

[54] UNESCO “Tradições e expressões orais, incluindo a língua como veículo do patrimônio cultural imaterial”. No momento da consulta, não foi encontrada uma versão em português deste site, porém, estão disponíveis versões em inglês, espanhol e francês. https://ich.unesco.org/es/tradiciones-y-expresiones-orales-00053, (Último acesso: 11 de janeiro de 2023).

[55] Jens Schröter, Jesus of Nazareth: Jew from Galilee, Savior of the World, trad. ingl. Wayne Coppins (Waco: Baylor University Press, 2014), 68; Jesus von Nazareth. Jude aus Galiläa Retter der Welt (Leipzig: Evangelische Verlagsanstalt 2017), 125.

[56] Amos Yong, Beyond the Impasse. Toward a Pneumatological Theology of Religions (Grand Rapids/Carlisle: Baker Academic/PaterNoster Press, 2003), 73.  

[57] Ibid., 73-74.

[58] No caso de Babel, o império referido seria então o Império Mesopotâmico, interpretação rejeitada pelo exegeta. Cf Carr Genesis 1–11, 332.

[59] Holladay, Acts: A Commentary, 94.

[60] Patrício Sauzet, “L’occitan: langue immolée”, em Geneviève Vermès (ed), Vingt-cinq communautés linguistiques de la France (Paris: L’Harmattan, 1988), 214 n. 2.

[61] Patrick Sauzet, “Diglossie, conflit ou tabou?”, 8.

[62] Ibid.

[63] Ibid.

[64] Ibid.

[65] Sauzet, “Diglossie, conflit ou tabou?”, 5.

[66] Sauzet, “Occitan: de l’importance d’être une langue”, 101.

[67] Ibid.

[68] Ibid.

[69] Carr, Genesis 1–11, 332.

[70] Ibid.

[71] John Dominic Crossan, God & Empire: Jesus Against Rome, Then and Now (San Francisco: HarperOne, 2008), 28.

[72] Ibid.

[73] Crossan, Render Unto Caesar, 21.

[74] Ibid.: “If Caesar and God are neither identified nor equated, how are they associated, accommodated, adapted, assimilated, or acculturated to one another in the actual world in which we all live?”.

[75] Ibid.: “Notice that those five verbs represent the classic slippery slope toward full acculturation.”.

[76] Ibid.: “By that word I designate a deep integration in the surrounding culture so that you swim in it smoothly, unconsciously, and uncritically—like fish.”.

[77] Ibid.: “Acculturation is the drag of normalcy, the lure of conformity, the curse of careerism that can—under certain leaders, in certain circumstances, at certain times and places—turn some of us into monsters, many of us into liars, and most of us into cowards.”.

[78] Ibid.: “The question of divine rule and human acculturation.”.

[79] Ibid.

[80] Adriana Destro, Mauro Pesce, “Jésus était-il un révolutionnaire politique?”, in Andreas Dettwiler (ed), Jésus de Nazareth. Études contemporaines  (Genebra: Labor et Fides, 2017), 218 y 222.

[81] Sauzet, “Diglossie: conflit ou tabou?”, 15.

[82] Crossan, God & Empire, 60.

[83] Ibid.

[84] Roberto S. McElvaine, Eve’s Seed: Biology, the Sexes, and the Course of History (Nova Yorque: McGraw-Hill, 2001), 100; citado por Crossan, God & Empire, 61.

[85] Carr, Genesis 1–11, 179 : « Abel’s death at the hand of Cain (4:8) represents the first instance of the human mortality which was proclaimed as inevitable at the end of the garden of Eden story (3:17-19, 22, 24). ».

[86] Sauzet, “Diglossie: conflit ou tabou”, 15.

[87] Ibid, 16.

[88] Ibid.: A questão da escolha aleatória “ encontra-se em 1807 na obra de Jean-Julien Trélis, onde se desenvolve a partir de um jogo de espelhos entre as duas línguas: o occitano permanece como a imagem da pureza nascente que o francês perdeu e, por sua vez, esta última língua oferece a imagem da degeneração que o occitano não teria deixado de experimentar se o destino das línguas tivesse sido invertido.”; Philippe Martel, “Jean-Julien Trélis: De l’idiome languedocien et de celle du Gard en particulier, édition du manuscrit”, Lengas, n° 24 (1988), 101-118.

[89] Ibid.

[90] Joaquim Du Bellay, La Deffence, et illustration de la langue françoyse [1549], ed. Francis Goyet, Olivier Millet, et al. (Paris: Champion, 2003).

[91] Alunos franceses aprenderam há muito tempo, na Idade Média, a França estava linguisticamente dividida entre os “Langue d’oïl” no norte e no “Langue d’Oc” no sul, sugerindo que o occitano não existe mais. Além disso, Patrick Sauzet cita o poema “La coumtesso” [1866] onde “Mistral elabora o conflito das duas línguas como um conflito de duplicatas. [...] As duas línguas são representadas como irmãs. Uma governa a propriedade da outra, que ela mantém prisioneira e finge estar morta..” (Sauzet, “Diglossie: conflit ou tabou”, 15).

[92] Carr Genesis 1–11, 184.  

[93] Essa conexão entre violência e dominação, ligada à terra (אֲדָמָה Gn 4,2), da qual Caim é inicialmente descrito como um servo, foi destacado pela exegese ecofeminista de Brigitte Kahl: “Eva canta por ter criado um ‘homem’ (איש) em vez de uma criança no início da história, um ‘homem’ que começa a ‘servir’ (עבד) a terra (Gn 4,2), mas acaba se antecipando à atual crise ecológica poluindo a terra com o sangue do irmão, destruindo assim sua relação com ela (Gn 4,11-12).” (Brigitte Kahl, “Fratricide and Ecocide: Rereading Genesis 2–4”, em Earth Habitat: Eco-Injustice and the Church’s Response, ed. Dieter Hessel e Larry Rasmussen, Minneapolis: Fortaleza Press, 2001, 57); citado por Carr, Genesis 1—11, 184.

[94] David Carr aponta a natureza deliberada do ato de Caim em Gn 4,8. (Carr, Genesis 1–11, 165).

[95] Crossan, God & Empire, 139.

[96] Sauzet, “Langue immolée”, 24.

[97] Ibid.

[98] Ibid.

[99] Ibid.

[100] Guy Lasserre, Les sacrifices dans l’Ancien Testament (Genebra: Labor et Fides, 2022), 25; para a perda do relacionamento com YHWH e as implicações da escolha deliberada de Caim de cometer assassinato, refiro-me a Carr Genesis 1–11, 165.

[101] Ibid.

[102] Jacques Dupuis, Vers une théologie du pluralisme religieux (Paris: Cerf, 1997), 297: “Jesus sela assim a aliança com os pobres.”.

[103] Estou citando aqui a resposta do Bernard Vernières, em uma pesquisa realizada por mim como parte de um projeto de pesquisa em Teologia Prática na Universidade de Genebra em 22 de novembro de 2021: “Una lenga de paures conven melhor per celebrar la kenòsi del Vèrb.”.

[104] Aloysius Pieris, “Universalidade do Cristianismo?”, 595; citado por Dupuis, Vers une théologie, 297.

[105] Christopher Rowland, “Liberation Theology”, in John Webster, Kathryn Tanner, Iain Torrance (ed), The Oxford Handbook of Systematic Theology (Oxford: Oxford University Press, 2007), 650.

[106] Ibid.

[107] Sauzet, ”Diglossie, conflit ou tabou?”, 2.

[108] John B. Thompson, “Editor’s Introduction” [1990], in Pierre Bourdieu, Language and Symbolic Language (Cambridge: Polity Press, 1991), 1.

[109] Hubert Bost, Babel: Du texte au symbole (Genebra: Labor et Fides, 1985), 191-197.

[110] Geffré, De Babel à Pentecôte, 37.

[111] Claude Geffré inclui a dimensão dialógica entre o “Novas abordagens para a universalidade do cristianismo.” (Geffré, De Babel à Pentecôte, 36). Também afirma: “É a partir da manifestação de Deus na particularidade histórica de Jesus de Nazaré que se deve estabelecer a natureza não imperialista e necessariamente dialógica do cristianismo..” (Ibid., 36).

[112] Ibid.: “O ecumenismo inter-religioso não conduz necessariamente ao indiferentismo ou ao relativismo; Também não tem apenas um propósito prático, que consiste na competição mútua entre as religiões para contribuir mais eficazmente para a paz mundial e a preservação da humanidade autêntica. É uma exigência de pensamento na medida em que qualquer encontro com ‘o outro’ O verdadeiramente diferente nos leva a aceitar as consequências de nossa historicidade e a relativizar nossos padrões de compreensão recebidos.”.

[113] Geffré, De Babel à Pentecôte, 62.

[114] “Amarás o SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração, de todo o teu ser e com toda a tua força.”, Dt 6,5; TOB.

[115] Geffré, De Babel à Pentecôte, 62.

[116] Ibid.

[117] Ibid., 63.

[118] Ibid., 64.

[119] Nicolau de Cusa, numa perspectiva escatológica, parece contemplar uma subsistência não da criatura, mas da humanidade em sua unidade, não intrínseca, mas obtida por meio de Cristo. Em sua obra De docta ignorantia Escreve: “Mas se um homem é elevado à unidade com esse mesmo poder, de modo que não é uma criatura Que subsiste em si o mismoo, mas em unidade com poder infinito, esse poder não é limitado pela criatura, mas por si mesmo” (De docta ignorantia, ed., Bari: G. Laterza & Figli, 1913, p. 130: “Sed si homo elevatur ad unitatem ipsius potentiae, ut non sit homo in se subsistens creatura, sed in unitate infinita potentia, non est illa potentia in creatura, sed in se ipsa terminata.”). Ainda no mesmo texto, afirma: “[...] toda criatura [existe] naquela humanidade suprema e perfeita que abraça universalmente tudo o que é capaz de ser criado, de modo que encontra em [Jesus] toda a sua plenitude” (Ibid., 133: “[...] Omnis creatura in ipsa humanitate summa et perfectissima universaliter omnia creabilia complicanti, ut sit omnis plenitudo ipsum inhabitans.”).

[120] Geffré, De Babel à Pentecôte, 62.

[121] Ibid.

[122] Ibid.

[123] Ibid.

[124] Ibid., 35. Em resposta à afirmação de Geffré, de que “o religioso é radicalmente plural”, poderíamos arriscar afirmar que, onde a religião é radicalmente plural, a linguagem tende naturalmente a se tornar uniforme, a querer ser uma língua única.

[125] André Gounelle, “Religião” em Vocabulaire théologique, http://andregounelle.fr/vocabulaire-theologique/religion.php, (Último acesso: 19 de junho de 2022).

[126] Geffré, De Babel à Pentecôte, 55.

[127] Sobre o motivo mitológico e a noção de “Caoskampf”, evidenciado pela tese de Hermann Gunkel, Schöpfung und Chaos em Urzeit und Endzeit [1895], consultare Jo Ann Scurlock e Richard H. Beal, Creation and Chaos: A Reconsideration of Hermann Gunkel’s Chaoskampf Hypothesis, Creation and Chaos: A Reconsideration of Hermann Gunkel’s Chaoskampf Hypothesis (Lago Winona: Eisenbrauns, 2013).

[128] Geffré, De Babel à Pentecôte, 62.

[129] Sobre a autoridade das Escrituras, ver em particular Robert W. Jenson, Systematic Theology, vol. 1 (Oxford/Nova Iorque: Oxford University Press, 1997),  23-41.

[130] Paul Tillich, Systematic Theology, vol. 3 (Chicago: The University of Chicago Press, 1963), 6: “A teologia sistemática protestante deve levar em conta a relação atual, mais afirmativa, entre catolicismo e protestantismo. A teologia contemporânea deve considerar o fato de que a Reforma não foi apenas um ganho religioso, mas também uma perda religiosa. Embora meu sistema enfatize fortemente o ‘princípio protestante’, não ignorou a exigência de que o ‘substância católica’ junte-se a ele, como a seção sobre o Iglesia, uma das mais extensas de todo o sistema.”. Ver também Paul Tillich, Substance catholique et principe protestant (Genebra/Paris/Laval: Labor et Fides/Cerf/Presses de l’Université de Laval, 1996).

[131] Paul Tillich, “L’idée d’une théologie de la culture”, dans Id., La dimension religieuse de la culture, Genève/Paris/Laval, Labor et Fides/Cerf /Presses de l’Université de Laval, 1990, 34.

[132] Geffré, De Babel à Pentecôte, 84.

[133] Langdon Gilkey, “Tillich: The Master of Mediation”, em Charles W. Kegley (ed.), The Theology of Paul Tillich (Nova Iorque: The Pilgrim Press, 1982), p. 49.

[134] Geffré, De Babel à Pentecôte, 52.

[135] Ibid, 49.

[136] Geffré lembra que para Karl Barth, a questão, por exemplo, do pluralismo religioso de facto ou de jure foi um “Esta é uma pergunta teológica vã, uma vez que as Escrituras não fornecem uma resposta para tal enigma.”, Geffré, De Babel à Pentecôte, 47.

[137] Ibid., 63: “Sem dúvida, assim como as culturas, as religiões estão sob o signo da ambiguidade.”.

[138] Römer, “Milieux bibliques”, 406.

[139] Robert W. Jenson, Systematic Theology, vol. 2, 63: “How does our discourse ever get started? Speech presupposes language, but language presupposes speech; seemingly, there must be a first Speaker, in whose address the distinction of speech and language does not obtain.”. 

[140] Tomás de Aquino, Suma teológica, vol. VII, (São Paulo: Loyola, 2013), 2a 2ae q 176, 555-560.

[141] João Calvino, Instituição da religião [1559], t. 2, III, 25, 3, 445: “Por que Cristo não mostrou os ilustres sinais de sua vitória no meio do templo e em praça pública? Por que não se apresenta em sua terrível majestade aos olhos de Pilatos? Por que não aparece ressuscitado aos sacerdotes e a toda Jerusalém?”.

[142] Tomás de Aquino, Suma teológica, 555. Por exemplo: “Os que tinham recebido o dom das línguas exprimiam-se melhor em sua própria língua.” ou “A natureza não faz por muitos meios o que pode fazer por um só; e muito menos Deus, que opera mais ordenadamente que a natureza. Ora, Deus podia fazer com que seus discípulos fossem entendidos por todos, falando numa só língua.”.

[143] Ibid., 557: “Por isso, diz Agostinho: ‘Atualmente, todos recebem o Espírito Santo e, não obstante, não falam as línguas de todos, porque a Igreja já fala as línguas de todos os povos [...]’.”.

[144] Ibid.

[145] Ibid., 559: “O dom de profecia nos dá a conhecer as próprias realidades.”.

[146] Ibid., 560: “Pois, de quem fala em línguas se diz que ‘não fala aos homens’, isto é, ao seu intelecto ou para a sua utilidade, mas só para o intelecto de Deus e para a sua glória. Ora, pela profecia o homem se ordena a Deus e ao proveito do próximo; portanto, ela: é um dom mais perfeito.”.

[147] Ibid.

[148] Geffré, De Babel à Pentecôte, 89. Zumstein não diz mais nada: “Este termo Logos é conhecido tanto na tradição judaica do Antigo Testamento quanto no mundo helenístico, e neste ambiente complexo, refere-se a uma das maneiras pelas quais Deus se manifesta. [...] A face de Deus para o mundo é subsumida na noção de Logos.” (Jean Zumstein, L’évangile selon saint Jean. Vol. 1: 1–12. CNT 4a. Genenra, Labor et Fides, 2007, 56).

[149] Ferdinand de Saussure, Curso de linguística geral, trad. Antônio Chelini, José Paulo Paes e lzidoro Blikstein (São Paulo: Cultrix, 2013), 238.

[150] Ibid. Saussure também diz, logo antes, que “a força de intercurso [...] cria as comunicações entre os homens.”.

[151] Ibid., 239.

[152] Ibid., 238.

[153] Jules Ronjat, Le développement du langage observé chez l’enfant bilingue, ed. Pierre Escudé (Francoforte/Berna: Peter Lang, 2013), 38: “Monnaie de change sans empreinte et qui a cours partout”.

[154] Fernand Hallyn, Jacques Georges, “Aspects du paratexte”, em Introduction aux études littéraires, ed. Delcroix-Hallyn, 210-211; citado por Zumstein L’évangile selon saint Jean, 49.

[155] Zumstein, L’évangile selon saint Jean, 50.

[156] Ibid.

[157] Consultare a este respeito, Pierre Escudé, “Intégrations, ‘force d’intercourse’, identités”, Essais 14 (2018), 34: “Um dos efeitos terroristas da linguagem é impor um ‘espírito de campanário’ como ‘força do intercurso’: um dialeto/uma língua impõe-se aos outros a ponto de se autoconsagrar como língua alta, única, universal, e negar aos outros o mesmo status de língua, deslegitimando seus falantes, negando o universo cultural que transmitem, proibindo qualquer transmissão, consciência e memória de uma história, literatura, conhecimento erudito ou popular.”.

[158] Zumstein, L’évangile selon saint Jean, 56: “Enquanto o relato em Gn evoca a criação do mundo e da história por Deus, Jo 1,1 fala do início antes do começo. O foco não está no relacionamento de Deus com o mundo e os seres humanos, mas no relacionamento de Deus com o Logos em um início que precede a criação.”.

[159] Zumstein, L’Évangile selon saint Jean, 56-57.

[160] Clifford Ando, “Augustine on Language”, Revue des Études Augustiniennes 40 (1994), 45: “Nós pode ver que as frequentes expressões de desconfiança autoral de Agostinho não são meramente tropos retóricos, mas também declarações de princípio filosófico, e que quando ele insiste que não disse nada significativo em palavras sobre Deus, ele quer dizer isso.”.

[161] Eberhard Jüngel, Gott als Gheimnis der Welt. Zur Begründung der Theologie des Gekreuzigen im Streit zwischen Theismus und Atheismus [1977] (Thübingen: Mohr Siebeck, 2010), 313: “Das Verhältnis der menschlichen Sprache zu einem Gott, der, wenn überhaupt, dann als von sich aus Redender zu denken ist.”.

[162] Ibid.: “Inwiefern lässt sich von der menschlichen Sprache behaupten, dass sie Gott zur Sprache bringt?”

[163] Claude Geffré, De Babel à Pentecôte, 51.

 

[164] Amos Yong, “On Binding, and Loosing, the Spirits: Navigating and Engaging a Spirit-Filled World”, in Veli-Matti Kärkkäinen, Kirsteen Kim, Amos Yong (orgs), Interdisciplinary and Religio-Cultural Discourses on a Spirit-Filled World. Loosing the Spirits (Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2013), 2.

[165] Ibid.

[166] Yong cf supra.

[167] Dieter Zeller traduz διαιρέσεις como “Zuteilungen”, ou seja, a ideia de uma distribuição por alocação, uma atribuição, e destaca que “o verbo διαιρεῖν em [1 Co 12, 11] sugere o primeiro sentido, o qual implicitamente inclui a diferença.” . O exegeta também faz referência a Rm 12,6, onde Paulo fala de dons diversos (χαρίσματα διάφορα) (Dieter Zeller, Der erste Brief an die Korinther, KEK 5, Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 2010, 389-390).

[168] Yong, “On Binding, and Loosing, the Spirits: Navigating and Engaging a Spirit-Filled World”, 4.

[169] Ibid, 5.

[170] Wilhelm von Humboldt, “Über die Verschiedenheit des menschlichen Sprachbaues und ihren Einfluss auf die geistige Entwicklung des Menschengeschlechts”, em Gesammelte Schriften, vol. 7, org. Albert Leitzmann (Berlim/Boston: De Gruyter, 1967), 53: “Die Sprache ist das bildende Organ des Gedankens.”.  

[171] Wilhelm von Humboldt, “Über das vergleichende Sprachstudium in Beziehung auf die verschiedenen Epochen der Sprachentwicklung” [1820], em Andreas Filtner, Klaus Giel (ed), Werke in fünf Bänden, vol. 3 (Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2010), §14, 13: “Das Wesen der Sprache besteht darin, die Materie der Erscheinungswelt in die Form der Gedanken zu gießen”.

[172] Rowland, “Liberation Theology”, 648: “Liberation theology has thus given prominence to themes neglected in the mainstream Christian tradition. It has been important to retrieve ‘alternative stories’, whether neglected or buried.”.

[173] Yong, “On Binding, and Loosing, the Spirits”, 6.

[174] Ibid.: “Contemporary pluralism thus accentuates how various cultural-linguistic frameworks function to enable their adherents to imagine, engage, and interact with a spirit-filled world”.

[175] Διάλεκτος  é uma forma derivada do verbo διαλέγω: conversar. Amós Yong, em relação à experiência do Espírito, fala da “riqueza da conversa global.”. Cf Scott Daniels, New Creation Conversation, Temporada 2, Episódio 21: “The Richness of That Global Conversation”, em “Dr. Amos Yong on the Theology of the Holy Spirit and Thinking Theologically about Disability”, 9 de julho de 2021, 37’14, https://podcastaddict.com/episode/135254451, (Último acesso: 26 de setembro de 2023).

[176] Cf supra; Amos Yong, Beyond the Impasse, 73.

[177] Escudé, “Intégrations, ‘force d’intercourse’, identités”, 26: “les langues servent avant tout à conceptualiser (plus que penser) et à faire (plus que communiquer)”.

[178] Yong, Beyond the Impasse, 73.  

[179] Escudé, “Intégrations, ‘force d’intercourse’, identités”, 17: “Espaço entre duas línguas normadas, que vão da agramaticalidade à translanguência observada por Ofelia García, cf “La langue française et les autres”, L’Éducation bilingue en France. Politiques linguistiques, modèles et pratiques, éd. Christine Helot et Jürgen Erfurt, Lambert Lucas, 2016, 9-13.”.

[180] Cf supra.

[181] Geffré, cf supra.

[182] Michel Quesnel, “État de la recherche sur Paul”, em Andreas Dettwiler, Jean-Daniel Kaestli e Daniel Marguerat (orgs), Paul, une théologie en construction (Genebra: Labor et Fides, 2004), 29.

[183] Alain Badiou, São Paulo. A Fundação do Universalismo, trad. Wanda Caldeira Brandt (São Paulo: Boitempo, 2009).

[184] Michel Quesnel faz uma distinção entre, de um lado, o cristianismo universalista de Badiou e Agamben, e de outro, através de Nietzsche, Jacob Taubes ou Didier Franck, uma reflexão “a partir da concepção paulina do corpo, como corpo físico e corpo social.” (Quesnel, “État de la recherche sur Paul”, 30-31).

[185] Ibid., 31.

[186]  Ibid.

[187] Ibid., 38.

[188] Ibid.

[189] Alain Badiou fala sobre “uma singularidade universal” (Badiou, São Paulo, 21).

[190] Quesnel “État de la recherche sur Paul”, 30.

[191] Badiou evoca “um processo de fragmentação em identidades fechadas, e a ideologia culturalista e relativista que acompanha essa fragmentação.” (Badiou, São Paulo, 17).

[192] Quesnel, “État de la recherche sur Paul”, 30.

[193] Zeller, Der erste Brief an die Korinther, 511-512: “Gemeinsam aber ist beiden Passagen die Auffassung von der „der Seele“: sie ist das Prinzip eines nur auf das Irdische beschränkten […] Lebens.”.

[194] Ibid. 512: “Dadurch soll klargestellt werden, dass der pneumatische Leib nicht aus „Geist“ besteht—ebensowenig wie die seelische nur aus Seele—, sondern ganz vom Geist Gottes erwirkt und durchwirkt ist. Dies hat freilich Folgen für die Beschaffenheit (ποιότης) des Leibes.”.

[195] Pierre Bühler, “Pistes de travail”, em André Birmelé, Pierre Bühler, Jean-Daniel Causse, Lucie Kaennel (org.), Introduction à la théologie systématique (Genebra: Labor et Fides, 2008), 469.

[196] Geffré, De Babel à Pentecôte, 46-47.

[197] Ibid., 39.

[198] Ibid.

[199] Ibid.

[200] Ibid.

[201] Wei Hua, “Pauline Pneumatology and the Chinese Rites”, em Gene L. Green, Stephen T.; Pardue, K. K. Yeo (org.), The Spirit over the Earth. Pneumatology in the Majority World (Grand Rapids: Langham Global Library, 2016), 98: “...”.

[202] Geffré, De Babel à Pentecôte, 40.

[203] Ibid.

[204] Amos Yong, Renewing Christian Theology Systematics for a Global Christianity (Waco: Baylor University Press, 2014), 19: “While no one should minimize the contributions of Christian missionaries, especially in preserving the languages of indigenous cultures (Sanneh 1989), I also should not turn a blind eye toward the many ways in which non- Western ways of life were devalued. […] Christians in the majority world who were once the objects of missionization are now engaged in massive efforts to reevangelize the Western world (e.g., Währisch-Oblau 2009). […] On the other hand, there is also the sense that Christianity’s contemporary theological formulations remain dominated by Western cultural forms and expressions perpetuated by the missionary movement (Rah 2009).”.

[205] Cf supra.

[206] Geffré, De Babel à Pentecôte, 68.

[207] Isto aplica-se, em particular, à formulação de Jo 14,2 de acordo com Zumstein L’évangile selon saint Jean, vol. 2, 60.

[208] Jacques Dupont, The Salvation of the Gentiles. Essays on the Acts of the Apostles (Mahwah: Paulist Press, 1979), 58: “The Church was born universal”; citado por Keener, Acts: An Exegetical Commentary, 844.

[209] Rowland, “Liberation Theology”, 648.

[210] Claude Geffré, “La vérité du christianisme à l'âge du pluralisme religieux”, Angelicum, Vol. 74, nº  2 (1997), 178: “Um teólogo como Hans Urs von Balthasar pôde falar da não-catolicidade da Igreja em sua dimensão histórica no sentido de um confronto permanente entre Israel e a Igreja até o fim dos tempos.”; Id., De Babel à Pentecôte, 75: “Seguindo um certo absolutismo católico, é possível, seguindo Hans Urs von Balthasar, falar da não-catolicidade da Igreja em sua dimensão histórica”; Geffré faz referência a Hans Urs von Balthasar, De l’intégration (Paris: Desclée de Brouwer, 1970), 161-166; ed. orig. Das ganze im Fragment. Aspekte der Geschichtstheologie (Einsiedeln: Benziger Verlag, 1963).

[211] Geffré, De Babel à Pentecôte, 67.

[212] Ibid, 11.

[213] Pierre Gisel Sortir le religieux de sa boîte noire (Genebra: Labor et Fides, 2019), 195-196: “O desafio é desmontar um fantasma da totalização, seja em termos de conhecimento ou projeto, um projeto para a humanidade ou um projeto deliberadamente social. Foi um ‘sonho’ que acabou não só ‘impossível’, mas, em última análise, ‘ilegítimo’ ou enganosa, que levou a um ‘desastre’, seja por seus impulsos totalitários—E o comunismo é apenas uma ilustração exacerbada disso.—ou na forma de vácuo. Havia um sonho de reconciliação, de cada indivíduo consigo mesmo e com todos, da humanidade e do mundo, da humanidade e seus ideais antes confiscados. Um sonho fundamentalmente fusional ou pelo menos de homogeneidade.”.

[214] Rowland, “Liberation Theology”, 647-648: “Doctrinally, liberation theology does not deviate much from the theological mainstream.”.

[215] Césaire, cf supra.

[216] Robert W. Jenson, Systematic Theology, vol. 1, 26; Ibid., 25: ““Faith that the church is still the church is faith in the Spirit’s presence and rule in and by structures of the church’s historical continuity.” (“Acreditar que a Igreja ainda é a Igreja é crer na presença e no governo do Espírito nas e através das estruturas historicamente contínuas da Igreja.”).

[217] Pierre Bühler, “L’étranger comme point de cristallisation de l’autre” [2015], em Bewegende Begegnung. Rencontre interpellante. Aufsätze, Einmischungen, Predigten. Articles, interventions, prédications, Lucie Kaennel, Andreas Mauz, Franzisca Pilgram-Frühauf (Zurique/Genebra: Theologischer Verlag Zürich/Labor et Fides, 2020), 71: “O desafio do estrangeiro é [também] um desafio teológico.”.

[218] Eu retomo aqui a tradução francesa de Bernard Lauret, com a colaboração de Henry Mottu para a nova edição francesa: Dietrich Bonhoeffer, De la vie communautaire (Genebra: Labor et Fides, 2007), 95 ; ed. bras.Vida em comunhão, trad. Ilson Kayser (São Leopoldo: Sinodal, 1983); ed. orig. Gemeinsames Leben/Das Gebetbuch der Bibel, Gerhard Ludwig Müller, Albrecht Schönherr (Gütersloh/München: Gütersloher Verlagshaus, 2019), 94: “Damit hat Christus uns die Gemeinde und in ihr den Bruder zur Gnade gemacht.”.

[219] Théodore Agrippa d'Aubigné, Les Tragiques, IV 691-698, org. Frank Lestringant (Paris: Gallimard, 1995), 208.

[220] Jean-Claude Milner, “Le même unit-il? Le séparé est-il un autre?”, Banquet de La Grasse, Conferência 11 de agosto de 2016, 30’30, https://www.youtube.com/watch?v=Bx4y7IYObdw&ab_channel=Banquetdelagrasse, (Último acesso: 15 de setembro de 2023).

[221] A descrição profética do Juízo Final (Mt 25,31-46) nos convida a ver no outro uma figura do Senhor, enquanto a parábola do Bom Samaritano (Lc 10,29-37) define o próximo não como o outro que encontramos, mas como nós mesmos sempre que assumimos a responsabilidade pelo outro..

[222] João Calvino, Institution de la religion chrétienne [1541], vol. 1 (Genebra: Droz, 2008), 189s. O autoconhecimento subordinado ao conhecimento de Deus também se refere à questão do terceiro como mediação, que deixamos de lado aqui. Consulte Philippe Vallin, Le prochain comme tierce personne chez Saint Thomas d’Aquin, (Paris: Vrin, 2000), quem cita Elredo de Rieval: “Ecce ego et tu, et spero quod tertius inter nos Christus sit.”.

[223] Bühler, “L’étranger comme point de cristallisation de l’autre”, 71.

[224] Ibid, n. 7.

[225] Martin Buber, O caminho do homem segundo o ensinamento chassídico, trad. Claudia Ebeling (São Paolo: Realizaçães, 2011), 43-44; “Der Weg des Menschen nach der chassidischen Lehre” [1948], em Susanne Talabardon (org), Chassidismus II, vol. 17, (Gütersloh: Gütersloher Verlagshaus), 240. 

[226] Geffré, De Babel à Pentecôte, 17.

[227] François Jullien, O diálogo entre as culturas: do universal ao multiculturalisme,  trad. André Telles (Rio de Janeiro: Zahar, 2009) 178; ed. orig. L’universel. De l’uniforme, du commun et du dialogue entre les cultures (Paris: Point, 2011), 220.

[228] Ibid.

[229] Ibid.

[230] Borges ofereceu, através de “Sobre o rigor na ciência”, a oportunidade de meditar sobre a abstração e a redução, evocando um império onde “a Arte da Cartografia alcançou tal Perfeição” que foi produzido um mapa em escala 1:1, de modo que o grau de precisão entre o mapa e o território chegava ao ponto em que o mapa coincidia com o território. No contexto sociolinguístico, poderíamos dizer que os dialetos eram tanto o mapa quanto o território. (Jorge Luís Borges, “Sobre o Rigor na Ciência”, in História Universal da Infâmia, trad. de José Bento, Lisboa, Assírio e Alvim,1982, 117)

[231] Hölderlin, Carta do 4 de dezembro de 1801 a Casimiro Ulrich Böhlendorff, em Sämtliche Werke und Briefe, Bd. II (Munique: Carl Hanser Verlag, 1981), 926-929; Paul Ricœur, “Le paradigme de la traduction” [1998], em De la traduction (Paris: Bayard, 2004), 32.

[232] Jean-Luc Lamarre, “L’éducation cosmopolite: apprendre le propre, apprendre l’étranger”, Le Télémaque, (2012/1) n° 4, 31-46.

[233] Isso torna as línguas minorizadas uma figura do reprimido.

[234] Geffré, De Babel à Pentecôte, 38.

[235] Ibid.

[236] Ibid., 56.                 

[237] O falantes que aprendem uma língua minorizada (neo-falantes) enfrentam a questão de sua legitimidade, que é reservada aos falantes nativos.. Cf. James Costa, Kevin Petit Cahill, “Revitalisation linguistique”, in Langage et société 2021/HS1, 306-307: Frequentemente, novos alto-falantes são encontrados em “uma situação de ‘ilegitimidade’ devido à sua idade, origem geográfica (urbana vs. rural) ou às variedades que utilizam, que muitas vezes são influenciadas pelo contato com a língua dominante”.

[238] Ibid.

[239] Sauzet, “Occitan : de l’importance d’être une langue”, 103.

[240] Ibid: “A língua occitana oferece tanto a consideração desse contexto microlocal quanto sua integração em uma relação específica, mas compartilhável e complexa com o mundo, aberta a toda a humanidade. [...] Só existimos no mundo através da linguagem. Preservar um modo de estar no mundo que expresse especificamente os lugares e as pessoas que os habitam ou habitam, conectando os conteúdos mais humildes com os mais elaborados, merece o investimento de alguns neste momento. [...] Quem sabe qual valor o amanhã atribuirá à oportunidade de se reconectar com sua cultura? O objetivo é manter uma língua funcionando da forma mais rica possível para acolher aqueles que finalmente descem da Torre de Babel, desiludidos.”.

[241] Julia Christ, L’oubli de l’universel. Hegel critique du libéralisme (Paris: PUF, 2021), 61s.

[242] Aqui voltamos à distinção de Julia Christ entre o modelo althusseriano e o modelo Smithiano.

[243] Ibid., 6.

[244] Ibid., 31.

[245] Louis Althusser, Sobre a reprodução, trad. Guilherme Jõa de Freitas Teixeira (Petrópolis: Vozes, 1999), 289..

[246] Christ, L’oubli de l’universel, 31.

[247] Ibid, 289.

[248] Ibid., 33. Julia Christ cita a ilustração althusseriana: “Diz ainda: eis quem tu és: tu és Pedro! Eis a tua origem: foste criado por Deus desde toda a eternidade, embora tenhas nascido em 1920 depois de Cristo! Eis o teu lugar no mundo! Eis o que deves fazer! Nesse caso, se observares a ‘lei do amor’, tu serás salvo, Pedro, e farás parte do Corpo Glorioso do Cristo! etc.” (Althusser, Sur a reprodução, 288).

[249] Christ, L’oubli de l’universel, 178.

[250] Ibid. 178-179.

[251] Jean-Claude Milner, L’universel en éclats (Paris: Verdier, 2016), 8: “Interrogar o universal é questionar o operador ‘todo’.”.

[252] Perrine Simon-Nahum, “Le juif de Milner. Les juifs peuvent-ils sortir de L’histoire?”, Le Genre humain (2016/1-2) n° 56-57, 596.

[253] Realmente Milner atribui a Alexandre e não a Paulo a passagem do universal para o universalismo. (Milner L’universel en éclats, 71).

[254] Tácito, As Histórias, V, 4-5, Biblioteca Clássica de Loeb, Trans. Clifford H. Moore (Harvard: Harvard University Press, 1931), 179-186. 

[255] Milner, L’universel en éclats, 117. 

[256] Ibid, 123.

[257] Ibid., 115: “Mais precisamente, uma fórmula de linguagem beira a verdade se for poderosa o suficiente para afetar o operador ‘todo’.”.

[258] Pierre Bonnard, L’évangile selon saint Matthieu (Genebra, Labor et Fides, 20024), 232; Ver Matthias Konradt, Der Evangelium nach Matthäus (Göttingen/Bristol: Vandenhoeck & Ruprecht, 2015), p. 250: “[Die kanaanäische Frau zeigt einen Glauben], der schon jetzt in Jesus nicht nur den Messias Israels erkennt, sondern den, der als Messias Israels der Heilsbringer auch für die Völker ist.”.

[259] Matthias Konradt, Der Evangelium nach Matthäus, 249. 

[260] As críticas expressas na canção “Stéréotypes” do grupo Mauresca é que a língua hegemônica reivindica como herança o que obteve através da conquista, mas ao invés de se apropriar dela e abraçar a língua occitana, deixa-a decair: “O seu é seu, mas o meu não é credível”. Trata-se de reversibilidade ou reciprocidade? A pergunta pode ser: o que você faz com o que é meu? O que você faz com o que tirou de mim? Eu fiz minha a linguagem que você me impôs, mas você não a fez sua. Mauresca, “Stéréotypes” [videoclipe dirigido por Amic Bedel], 2008, https://www.youtube.com/watch?v=F2IHL0pNuJs&ab_channel=MaurescaFracasDub, (Último acesso: 21 de dezembro de 2022). A frase “O seu é seu, mas o meu não é credível” é provavelmente um eco da canção “L’accent” dos Fabulous Trobadors, que tem o refrão: “O teu, é o teu. E o meu, é o meu, ¡o acento!” (Fabulous Trobadors, On the Linha Imaginòt, Mercury France, 1998).

[261] A palavra ‘vizinho’ é a palavra escolhida para traduzir ‘próximo’ a partir de Lv 19,18. O falante em situação diglóssica conhece bem a língua de seu vizinho. Ele pode pensar na língua de seu vizinho. Mas essa proximidade, essa vizinhança, tem o poder de expulsá-lo de sua própria língua, de fazer com que ele perca completamente o que não era seu, tornando-o estranho a si mesmo de uma maneira que não é semelhante à descoberta de uma cultura estrangeira, mas de uma forma que o leva a se alienar completamente. Na verdade, o falante pode até desistir de transmitir o que ele havia recebido. Ele se desvincula de uma simulação de intercâmbio onde ele se tornou um elo na transmissão desse vizinho.

[262] Dietrich Bonhoeffer, Vida em comunhão, 87; Gemeinsames Leben, 77: “Damit hat Christus uns die Gemeinde und in ihr der Bruder zur Gnade gemacht.” (Eu traduzo aqui literalmente: “Assim, Cristo nos deu a comunidade e nela o irmão para a graça.”).

[263] Ibid., 87; Gemeinsames Leben, 86: “Du bist ein Sünder, ein großer heilloser Sünder und nun komm als dieser Sünder, der du bist, zu deinem Gott, der dich liebt. Er will dich so, wie du bist, er will nicht irgend etwas von dir, ein Opfer, ein Werk, sondern er will allein dich.”.

[264] Ibid., 87; Gemeinsames Leben, 77: “[Der Bruder] steht nun an Christi Statt.”.

[265] Paul Ricœur, O si-mesmo como um outro, trad. Lucie Moreire Cesar (Campinas: Papirus, 1991), 197: “Seule est sans doute praticable la mise en échec d’une suite indéfinie de tentatives d’identification.”.

[266] Ibid.

[267] Ricœur, Autrement. Lecture d’autrement qu’être ou au-delà de l’essence d’Emmanuel Levinas (Paris: PUF, 2006), 10-11.

[268] Ricœur, Autrement, 18: “On n’en a jamais fini avec le dire autrement, c’est seulement dans les fissures de la solidité des corrélations dissimulantes qu’un écho du Dire se laisse entendre dans le dit—promesse de la possibilité de remonter du dit au Dire.” (“Nunca se termina com o ‘Dito de outra forma:’; é somente nas frestas da solidez das correlações disfarçadas que se ouve no dito um eco do Dito, promessa da possibilidade de ascender do dito ao dizer.”).

[269] Ibid., 19.

[270] Emmanuel Levinas, De outro modo que ser ou para-lá da essência, trad. José Luis Pérez e Lavínia Leal Pereira (Lisboa: Centro da Filosofia da Universidade de Lisboa , 2007), 107; “A proximidade não entra neste tempo comum dos relógios que torna possível os encontros. Ela é perturbação”; ed. orig., Autrement qu’être ou au-delà de l’essence (Paris: Librairie générale française, 1978), 142 : “La proximité n’entre pas dans ce temps commun des horloges qui rend possible les rendez-vous. Elle est dérangement.”.

[271] Agostinho de Hipona, Sermo CXVII em Opera omnia, org. Jacques-Paulo Migne (Paris: Garnier, 1865), 663 (PL 38, 661-671): “Si enim comprehendis, non est Deus.”.

[272] Ricœur, Autrement, 20.

[273] Ibid., 25: “A angústia do discurso de Levinas é ainda agravada pela rejeição e negação de qualquer solução. ‘Teológico, tranquilizador ou consolador’.”.

[274] Levinas, De outro modo, 127; ed. orig., 176: “Dans le traumatisme de la persécution passer de l’outrage subi à la responsabilité pour le persécuteur.”.

[275] Ibid.: “Passividade que só merece o epíteto de integral o de absoluta se o perseguido for susceptível de responder pelo perseguidor.”; ed. orig., 175: “Passivité qui ne mérite l’épithète d’intégrale ou d’absolue que si le persécuté est susceptible de répondre du persécuteur.”.

[276] Ricœur, Autrement, 26: “É assim que a expiação não é redenção.”.

[277] Verso de Mistral, “Senhor, desliga/desgruda minha língua” é uma adaptação livre do Salmo 51(50),16: “Ó Deus, Deus da minha salvação, livrai-me do sangue, e a minha língua clamará”. (Frédéric Mistral, “Saum L Miserere mei, Deus” [1856], Œuvres poétiques complètes, vol. 2, org. Pierre Rollet, Aix-en-Provence: Ramoun Berenguié, 1966, 391.).

[278] O texto grego γλῶσσαι, παύσονται (1 Co 13,8c) traduz como “les langues cesseront” (Osty), “Cessaràn” (Roqueta-Larzac), “se taieront” [ ficará em silêncio] (NBS, BJ), “s’assiaudiràn” (Cubaynes), “prendront fin” (TOB). Em contraste com o amor que nunca falha, pode-se dizer também “os idiomas falharão”.

[279] Zeller, Der erste Brief an die Korinther, 415.

[280] Kurt Mueller-Vollmer, Markus Messling, “Wilhelm von Humboldt”, A Enciclopédia de Filosofia de Stanford, Ed. Eduardo N. Zalta, Edição Primavera 2017; https://plato.stanford.edu/entries/wilhelm-humboldt/, (Último acesso o 2 de outubro de 2021): “Humboldt via a função da linguagem não se limitando simplesmente a representar ou comunicar ideias e conceitos existentes, mas como o “órgão formativo do pensamento” (das bildende Organ des Gedankens, GS, vol 6, 152) e, portanto, instrumental também na produção de novos conceitos que não surgiriam sem ele.”.

[281] Wolfhart Pannenberg, Theologie und Reich Gottes (Gütersloh: Mohn, 1971), 12;  citado por André Birmelé, «L’eschatologie», in André Birmelé, Pierre Bühler, Jean-Daniel Causse e Lucie Kaennel (orgs.), Introduction à la théologie systématique, (Genebra: Labor et Fides, 2008), 390.

[282] Cf. supra.

[283] Pierre Teilhard de Chardin, “Letra de 12 de outubro de 1951”, em Lettres intimes de Teilhard de Chardin, notas e anotações de Henri de Lubac (Paris: Aubier-Montaigne, 1974): “Desde a minha infância, minha vida espiritual não deixou de ser completamente dominada por uma espécie de “sentimento” profundo da realidade orgânica do Mundo; um sentimento originalmente bastante vago em minha mente e coração, mas que gradualmente se tornou, ao longo dos anos, um sentido preciso e avassalador de uma convergência geral em si mesmo do Universo; esta convergência coincidindo e culminando no seu ponto mais alto com Aquele em quem tudo subsiste, a quem o Céu me ensinou a amar.”.

[284] Mt 6,5: Ἀμὴν λέγω ὑμῖν, ἀπέχουσιν τὸν μισθὸν αὐτῶν.

[285] Citação não documentada, comumente atribuída em francês a Kierkegaard, semelhante à meditação de Kierkegaard sobre o túmulo vazio. Ver Søren Kierkegaard, Entweder-Oder, (Michael Holzinger, Berliner Ausgabe, 2013), 207-210.

[286] Matteo descreve o Pai como τέλειος, chamando os crentes a conformarem-se com Ele (Mt 5, 48: Ἔσεσθε οὖν ὑμεῖς τέλειοι ὡς ὁ πατὴρ ὑμῶν ὁ οὐράνιος τέλειός ἐστιν.) . E podemos entender Mt 24,14c (καὶ τότε ἥξει τὸ τέλος, que pode ser traduzido como “e então virá o τέλος”) como uma referência à volta de Jesus.

[287] Jürgen Moltmann, Teologia da Esperança. Estudos sobre os fundamentos e as conseqüências de uma escatologia cristã [1968] (São Paolo, Teológica: 2005), 17: “A escatologia cristã não fala do futuro como tal. [...] A escatologia cristã fala de Jesus Cristo e do seu futuro.”.

[288] Albert de Pury, Thomas Römer, Konrad Schmid, La Genèse, 26: “O Deus criador pode recorrer [à figura absoluta do caos], se necessário, para torná-lo um instrumento de destruição da terra habitável.”.

[289] Moltmann, Teologia da Esperança, 15.

[290] Ibid.

[291] Birmelé, “L’eschatologie”, 376.

[292] Rowland, “Liberation Theology”, 648: “It is its hope for a better world which links liberation theology in general terms with the chiliastic tradition down the centuries […]. The legacy of Augustine’s City of God has been so pervasive in Christian doctrine that the view of a this-worldly hope has either been interpreted in other-worldly terms or simply pushed to the margins of the Christian tradition.” (“É a sua esperança de um mundo melhor que liga a teologia da libertação em termos gerais com a tradição quiliástica ao longo dos séculos [...]. O legado da Cidade de Deus de Agostinho tem sido tão difundido na doutrina cristã que a visão de uma esperança mundana tem sido interpretada em termos de outro mundo ou simplesmente empurrada para as margens da tradição cristã.”).

[293] Isabelle Ullern, Pierre Gisel (org.), Penser en commun ? Un « rapport sans rapport ». Jean-Luc Nancy et Sarah Kofman lecteurs de Blanchot (Paris: Beauchesne, 2015), 109-138.

[294] “Se alguém está em Cristo, é uma nova criação [καινὴ κτίσις]. O velho já passou: há novidade ali.” (2 Co 5,17; NBS trad. rev.). Veja também Gl 6,15.

[295] Ideologias odiosas muitas vezes se apropriam superficialmente do que consideram marcadores. identitários, ao mesmo tempo em que desenvolviam e implementavam uma ideologia do “homem novo” (nazismo, fascismo), motivo transversal dos três totalitarismos do século XX, incluindo o stalinismo. A suspeita de fascismo com que seus detratores gostam de manchar as culturas tradicionais pode ser combatida observando-se que o fascismo valoriza o “homem novo” e sempre acaba apagando tudo o que existe para se estabelecer. A valorização da tradição durante a fase de sedução é a valorização de uma narrativa nacional idealizada, disfarçada, subjugada pela ideologia e que só pode atrair uma massa já despojada de seu legado. A descrição da barbárie feita por Walter Benjamin baseia-se na figura do construtor, aquele que constrói “algo novo”. Não se trata aqui do novo familiar que a linguagem é capaz de expressar, mas do radicalmente novo, aquele que promete um projeto de aniquilação e, como tal, não tem nenhuma ligação com o passado, a não ser seus esforços para negar até mesmo sua existência; veja Walter Benjamin, Obras escolhidas. vol. 1 prefácio de Jeanne Marie Gagnebin, trad. Sérgio Paulo Rouanet (São Paulo: Brasiliense, 1987), 114-119; ed. orig. “Erfahrung und Armut” [1933], Gesammelte Schriften, vol. 2 (Francoforte: Suhrkamp, 1991), 213.

[296] Moltmann, Teologia da Esperança, 307.

[297] Friedrich Nietzsche, Also Sprach Zaratustra. Ein Buch für Alle und Keinen (Kehl: Swan Buch-Vertrieb, 1994), 74 : “Immer vernichtet, wer ein Schöpfer sein muss.” (“Sempre destrói quem deveria ser criador.”).

[298] Noam Chomsky, Language and Mind, 3rd ed. (Cambridge: Cambridge University Press, 2006), xiv, 10 e passim.

[299] Quanto à compatibilidade ou incompatibilidade entre um processo de Deus e a questão da temporalidade de Deus em Barth, referimo-nos a Mark James Edwards, Christ is Time (Eugene: Wipf and Stock, 2022), 157-159.

[300]  Por outro lado, o Deus dos possíveis se apresenta precisamente como o Deus de todos: “Eu sou o Senhor (YHWH), o Deus de todos. Há algo que seja surpreendente da minha parte?” (Jr 32, 27).

[301] Na versão original francesa do meu estudo, uso a noção da palavra francesa ‘bénévolence’, reminiscente do termo occitano ‘benvolença’, derivado de ‘benvoler’ (que significa amar alguém), para evitar as conotações de condescendência que estão cada vez mais associadas ao francês ‘bienveillance’. O poder tot’ (poder tudo) é distinto de ‘o voler tot’ (querer tudo).

[302] Deixo de lado aqui a noção de colaboração relacionada ao debate da justificação, bem como o debate sobre a possibilidade de o homem querer o bem. Concentramo-nos no interesse de Deus em manter, no ἔσχατον, uma relação não fusional com sua criatura, na hipótese/esperança de que o ἔσχατον não constitua o aniquilamento puro e simples da pessoa.

[303] Sobre a questão dos binômios/paradoxos dialéticos, bem como sobre a questão do véu e do desvelamento de Deus em sua revelação, veja Christophe Chalamet, Théologies dialectiques, 13s.

[304] Moltmann, Teologia da Esperança, 112-113.

[305] Ibid., 116: “Deus se revela ao ‘manter eternamente seu convênio e fidelidade’ (Sl 146,6).”.

[306] Eberhard Jüngel, Gottes Sein ist im Werden. Verantwortliche Rede vom Sein Gottes bei Karl Barth. Eine Paraphrase [1965], Tübingen, Mohr, 19864.

[307] Birmelé, “L’eschatologie”, 393-394.

[308] Adoto a ideia de Charles Mathewes, que articula concretamente a esperança cristã aplicando-a à vida pública. Depois de enfatizar a natureza profundamente ambivalente da esperança (um poderoso anestésico e um excitante irreprimível), Mathewes rejeita tanto modelos conservadores quanto liberacionistas, bem como modelos que buscam encontrar um equilíbrio entre os dois. O objetivo é compreender melhor o fenômeno da ‘esperança’ por meio dessas duas características: sua capacidade de mobilização e geração de visão. Em última análise, a nossa própria esperança é secundária. O que prevalece é, de um lado, a nossa resposta e, de outro, o interlocutor. (245). Como o mundo pode mudar (244) “está sujeito a um juízo escatológico radical” (245), articulando, assim, a imanência e a transcendência. É justamente porque a esperança nos envolve no mundo que nos transforma.: “SSomos, de certa forma, pessoas diferentes quando esperamos.” (246), fazer da esperança uma forma de habitar o mundo. A esperança provoca a ação, mas também nos convida a nos unir a essa esperança, o que Matheus chama de coragem “fundamentalmente vocativo e linguístico” de esperança (247). Ao fazê-lo, há elementos de distorção. Em particular “a esperança não promete que nossas esperanças serão realizadas, mas que a vontade de Deus será cumprida.” (251). A abordagem de Matheus à noção claramente toma forma em resposta aos discursos fechados que os crentes encontram na vida pública e política.: “ Mais diretamente, por trás de todos eles está o reconhecimento de que nosso mundo é mais do que esses sistemas permitem que seja.” (254). Ou novamente, “Os seres humanos e suas ações transcendem sua literalidade nua, e a esperança escatológica das igrejas emerge em parte através de sua recusa em tomar o sistema de Estado-nação com seriedade final.” (254). (Charles T. Mathewes, A Theology of Public Life (Cambridge: Cambridge University Pres, 2007).

[309] Blaise Pascal, Pensées, org. Leon Brunschvigg (Paris: GF-Flammarion, 1976), 81.

[310] Mathewes, A Theology of Public Life, 257.

[311] Ibid., 258.

[312] Carlos Wagner, L’homme est une espérance de Dieu (Paris: Van Dieren, 2007), 167.

[313] Bonhoeffer, cf supra.

[314] Basílio de Cesareia, Homélies sur l’Hexaméron, I 8, 20–28, SC (Paris: Cerf, 1968), 121.

[315] Jakob Wirén, Hope and Otherness: Christian Eschatology and Interreligious Hospitality (Leiden/Boston: Brill/Rodopi, 2018), p. 19: “A abordagem particularista é uma resposta bem-vinda a algumas das deficiências do exclusivismo, do inclusivismo e do pluralismo, principalmente em termos de reconhecer as diferenças entre as tradições religiosas e, assim, respeitar a integridade dessas tradições. Mas a forte ênfase na incomensurabilidade e na metáfora de línguas separadas também levanta questões sobre a possibilidade de pessoas de diferentes religiões serem realmente capazes de se entender e compartilhar experiências. Um foco unilateral nas diferenças impede trocas mútuas, bem como críticas e tende a isolar as tradições religiosas umas das outras”.

[316] Schleiermacher, cf surpa.

[317] A frase “Lenga del brèç” [Occ. a linguagem do berço] é uma expressão recorrente no occitano.

[318] 1 Co 15,36; João Calvino, cf. supra.

[319] Jüngel, Gott als Geheimnis, 68.

[320] Paul Ricœur, ”Envoi” em in Les protestants face aux défis du XXIe siècle. Actes du colloque du 50e anniversaire du journal Réforme (Genebra: Labor et Fides, 1995), 152.

[321] Mathewes, A Theology of Public Life, 258.

[322] Esta é a ‘questão dos tempos modernos’, segundo Jüngel, ou seja, a questão do fim da metafísica. (Jüngel, Gott als Geheimnis, 67).

[323] Geffré, De Babel à Pentecôte, 71.

[324] A pergunta seria, então: é possível dar às línguas, especialmente às minorizadas, um status teológico semelhante ao de Karl Rahner concedeu religiões? Ver Geffré, De Babel à Pentecôte, 51.

[325] Eu remeto, em Amos Yong Renewing Christian Theology Systematics for a Global Christianity, 242, ao que este último qualifica como “teologia pentecostal das línguas humanas”, no sentido de uma “teologia das línguas humanas fundamentada em Atos 2”: “Again, this is not to say that all aspects of all religions are redeemed, even as it is not to say that all aspects of every culture or all parts of every language are thereby sanctified by the Spirit. […] In the meantime, however, every language,culture, and even religious tradition potentially bears, however haltingly because of finite and fallen character, witness to the one under whom all things will be finally subject.” (“Novamente, isso não significa que todos os aspectos de todas as religiões são redimidos, assim como não significa que todos os aspectos de cada cultura ou todas as partes de cada língua são, portanto, santificados pelo Espírito. [...] Entretanto, até lá, toda língua, cultura e até mesmo tradição religiosa potencialmente testemunham, ainda que de maneira hesitante devido à sua natureza finita e caída, aquele sob quem todas as coisas serão finalmente submetidas.”).

[326] Jüngel, Gott als Geheimnis der Welt, 347: “Wie läßt sich die menschliche Sprache ausschalten, um den unsagbaren Gott zu erreichen? Die naheliegende Antwort ‘durch Schweigen’ ist insofern unzureichend, als Schweigen in sich vieldeutig ist.” (“Como silenciar a linguagem humana para alcançar o Deus inefável? A resposta óbvia, “através do silêncio”, é insuficiente na medida em que o próprio silêncio é ambíguo.”).

 

 

[327] Eric Gans, citado por Jean Baudrillard, The Perfect Crime (Londres: Verso, 1996), -1.

[328] Geffré, De Babel à Pentecôte, 35.

[329] Jenson, Systematic Theology, vol. 1, 32: “Theology is thinking what to say to be saying the Gospel.”.

[330] Rowland, “Liberation Theology”, 648.

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